a Sobre o tempo que passa: Ler Steiner de mala nos olhos e aluno na alma. Por Teresa Vieira

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

31.1.11

Ler Steiner de mala nos olhos e aluno na alma. Por Teresa Vieira





É sabido que George Steiner é um dos mais sofisticados intelectuais do circuito universitário e um dos mais importantes pensadores actuais.


Steiner é seguramente o exemplo vivo de uma aristocracia pensante.


Em nome do mistério da função sobre as maravilhas do saber e da transmissão do conhecimento, sigo este Mestre tanto quanto me é possível e, não recuso de modo algum, ser uma dependente da leitura dos seus livros, do seu eu, tanto quanto sou mais eu nesse caminho, usando aqui uma próxima expressão do dizer de Paul Celan.


Desconheço o número e a qualidade das pessoas que entendem o quanto a arrogância da razão os leva a saber tudo nada mais sabendo.


Desconheço o quanto as pessoas se sentem condenadas às suas próprias personalidades cruéis, falsas, mesquinhas e egoístas: o quanto os homens e as mulheres excepcionais já demonstraram como se poderia ter sido em vez do que se é.


Diz-nos Steiner que transformar a nossa existência num instante imprevisível por via e consequência do amor e suportar dores inomináveis devido à ausência do amado é desfrutar do sacramento mais inexplicável da vida humana.


Acrescenta ainda que, conhecer este instante imprevisível é, dentro do potencial de cada um, tocar a maturidade do espírito.


Assim, na sua Errata: revisões de uma vida, e depois de lermos mais esta obra sua que constitui um inequívoco marco cultural, fascinante e nítido e elegante na precisão, ainda fomos a tempo de ler o quanto
Steiner se reconhece incapaz de abdicar da convicção de que as duas maravilhas que validam a existência mortal são o amor e a invenção do tempo futuro.


E não temos como agradecer-lhe este pensamento, este sentir de excelência e que torna suportável outras realidades de panfleto com as quais temos de aceder no convívio.


É raro o talento deste grande professor.


É rara a corajosa pergunta: poderá a música mentir?


Com Steiner afigurasse-nos da maior honra possível aspirarmos à função de agitadores no meio destas canhestras civilizações, nas quais o pouco, é o excesso de todos no contributo de humanidade e para a humanidade.


Por isso, quando Steiner nos diz que toda a compreensão fica aquém, como se o poema circunscrevesse em seu redor um último círculo para uma autonomia inviolável, e que por essa realidade somos levados a questionarmo-nos sobre as parcialidades das compreensões, Steiner só nos está a prevenir para a possibilidade de virmos a ser afortunados.


E estamos menos sós e menos resumidos quando nenhum dicionário define a profícua história de uma inovação, de uma interpretação, de uma subversão, todas tão presentes nos movimentos das palavras de
Steiner.


Depois dos livros As lições dos mestres, Paixão intacta, Errata, Nostalgia do absoluto, Depois de Babel, entre outros tantos ensaios de Steiner, sempre nos situamos no virá a acontecer, na hermenêutica incompleta ou errónea do esforço interpretativo.


Ainda assim, tudo o que fica por dizer e o que foi dito se insere num contexto não explicativo posto que é mundo e num significado associado à circunstância e ao que percepcionamos, tendo sempre presente que não seremos capazes de «ouvir» Homero do mesmo modo que o seu primeiro público: tal o alerta de Steiner.


Tal a revisão da interpretação e a descodificação da realidade a que nos devemos vincular por ofício de entendimento.


Em última análise, diria que não temos documentos de interpretação e os eruditos também não. As versões que conhecemos são as dos Evangelhos e as vozes rabínicas que escutamos são as das congregações.


Então onde fica o nascimento? As sortes? Os motivos? A chegada e as partidas obreiras de maravilhas? As artes de inquirição de Sócrates?


Os dias como este? Os primatas andróginos? As comparações de Shakespeare? O destino? Flaubert? Os discípulos amados de Jesus? Zenão de Eleia? E Borges?


Se Steiner me aceitar com as minhas nas suas interrogações, diria em jeito e só em jeito, que há uma possibilidade insolúvel da verdadeira inspiração, da verdadeira revelação, ali mesmo onde induzimos nos outros uma aventura diferente da que conheciam, uma aventura que lhes há-de levar ao conhecimento de actuar sobre as possibilidades de uma existência mais enriquecedora e onde, nos momentos mais duros, os espreita, segurando-os, a arte e a poesia com morada e nome de universo.


Enfim, George Steiner: a convicção de um discurso a revisitar sempre de mala nos olhos e aluno na alma.


M. Teresa B. Vieira


31.1.11


Sec.XXI