a Sobre o tempo que passa: abril 2010

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

29.4.10

Doze pedaços, para discurso de homem revoltado!


Passos foi a São Bento, Sócrates a Belém, todos reconheceram o óbvio da turbulência e celebraram o medo dos mercados. Chamaram-lhe ataque dos especuladores ao euro. Na prática, a teoria continua a ser outra e quem se lixa é sempre o mexilhão do povo. Os banqueiros bem avisaram, os políticos bem equivocaram, os burocratas bem executaram...

Os partidos lavam as mãos como Pilatos. E a culpa continua a morrer solteira. O malandro é o monstro capitalista e a consequente falta de regulação da geofinança. Até Louçã corre o risco de ser nomeado supremo inquisidor da futura ASAE da União Europeia, que o Constâncio já subiu, Guterres já voltou ao picareta falante e Freitas com Soares vão articulando, como sermão de ex-ministros de Salazar sobre a teoria da democracia....

Soares já elogia Passos Coelho, mas ainda não lhe chama Obama. Quase todos continuam a tapar o sol com a peneira do propagandismo... Não tarda que Ricardo Salgado se junte a Jota Berardo em missa pontifical.

Só nos safaremos deste encurtar da rédea ao "rating" da república, se tal também acontecer ao da monarquia espanhola. Para que os grandes da Europa desapertem os cordões à bolsa, assumindo que os PIGS fazem parte do mesmo clube...

Por cá, muitos burocratas e reformadores de burocratas continuam como os primitivos actuais que vivem do preenchimento dos formulários, entre livros de ponto e fichas de avaliação. Isto é, domina o paradigma construtivista, onde a generalidade e a abstracção confundem os nomes com as coisas nomeadas...

Burocrata é estilo Frei Tomás: olha para aquilo que ele diz e não para aquilo que ele faz... Agora até afixam as entrevistas do chefe da quintarola no átrio de entrada... com fotocópia a cores, debaixo da nova sinalética....

Burocrata é sapateiro de Braga: não há moralidade nem comem todos... Comem apenas os que foram da lista dele e que o apoiam entusiasticamente como grande educador dos que querem ser promovidos à custa do trabalho dos outros....

Porque nem todos os animais da mesma espécie podem ser coisas da mesma categoria. Quem nos unidimensionaliza não admite a justiça do mérito!

Só há igualdade de oportunidades se houver competição, aquela que permite dar a cada um o que lhe é devido ("suum cuique tribuere"), proibindo que não se lese o outro ("alterum non laedere") e que a cultura dominante seja a do viver honestamente ("honeste vivere")...

Se continuar a rotina que leva o crime a compensar, vai perpetuar-se o clientelismo, a engenharia da cunha e a subsidiocracia. E os donos do poder continuarão a chamar gestão democrática à mais desdentada das gerontocracias e ao mais arbitrário do despotismo de todos... mesmo que previamente tenham investidos em números dois do PSD em tempo de mandar PS, ou vice-versa.

Quando só a cobardia falar e o carreirismo for regra, apenas se confirmará como as instituições perderam a espinha da ideia de obra, não gerando a comunidade das coisas que se amam e transformando as normas naquilo que os principais dizem ao sabor dos ventos, estando dispensados das que impõem aos outros.

Ditadura, nunca mais! Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Quem diz isto é maluco e deve ser processado...

28.4.10

O neofeudalismo das companhias de economia mística que nos vão corroendo a democracia...


Hoje não há comissão parlamentar de inquérito, devido à greve dos funcionários de São Bento e ao medo da administração da entidade mostrar a verdade ao país. Mas ontem a democratíssima e representatívissima comissão permitiu-nos fazer uma viagem pelo neopombalismo das companhias de economia mística, essas entidades a que alguns dão o nome de empresas e por circulam sujeitos nomeados pelos favores e compadrios do clientelismo banco-burocrático.

Os tais que, feitos gestores, utilizam tais molduras como brinquedos com que vão gastando o dinheiro que não é deles, como almoçaradas de trabalhos, carros de alta cilindrada, antes de serem ou depois de serem membros da alta governança do estadão.

E assim vamos nacionalizando os prejuízos e privatizando os lucros das forças vivas que vão manipulando a vaidade de uma fauna daquele bloco centraleiro que pouco se importa com ganhos ou gastos. Basta-lhes um contratozinho onde acautelem indemnizações por despedimento, mesmo que seja por justa causa, recebendo ampla protecção da consultadoria e dos grandes escritórios da advocacia e das avenças, nessa federação de colegas que nos continua a pesar no lombo. E é em torno destas falsas luminárias que continua a gravitar certa comunicação social e certo comentarismo opinativo, dados à encomendação.

Só quando os interesses da oligarquia accionista, dos velhos e novos ricos, perceberem que correm risco é que esses escudos invisíveis dos favores poilitiqueiros e plutocráticos poderão começar a estilhaçar. Por enquanto ainda persistem os cânticos celestiais sobre o "rating" e a dívida, a ditadura da incompetência continuará a amargurar-nos, com estes bonzos instalados nos vários lemes destas grandes e pequenas governanças, entre o ministerialismo e o micro-autoritarismo sub-estatal.

O neofeudalismo patrimonialista que vai corroendo a legitimidade racional-normativa já não cumpre a ideia de Estado de Direito. Espero q ue antes de se agravarem os sinais de bancarrota tenhamos a coragem de demonstrar a existência de uma grandiosa estátua de calhaus com os pés fragmentados pela poeira dos pequenos interesses dos sucessivos incompetentes devoristas...

27.4.10

Valia mais sermos pigmeus, mas ascendendo à cabeça dos gigantes


Quem andou pelas festas de Sant Jordi, com uma rosa contra o dragão e a descobrir a origem das riscas blaugranas, teve que reforçar a mística liberal e a fraternidade peninsular. Foi uma bela jornada de trabalho, sobretudo na Biblioteca Arús, nessa terra de boa gente que é Barcelona, mas que me impedir ir à jantarada do Albergue...


Regresso e confirmo: só tipos de sete línguas e gatos de sete vidas é que se safam nesta encruzilhada. Para além do parlamentarês, do judicialês, do economês. do educacionalês, do medicalês, do engenheirialês e do padrecofilês, temos de levar marretadas frequentes do "paga primeiro, protesta depois", em multas, taxas, impostos, côngruas e gorjas...É tudo uma questão de fluxo de tesouraria...


Com efeito, as parangonas lusitanas estão cheias de árvores queimadas, ramos de árvore, folhinhas, ramículos, borradelas de pássaro e outras questiúnculas das guerrazinhas de homenzinhos... Ate já se glosa um António Martins! Prefiro continuar pigmeu, mas subindo à cabeça do gigante adormecido

Tenho a impressão que o parlamento, mesmo sem maioria absoluta, começa a enredar-se em truques de regimentalismo de certa metalinguagem que o afasta das angústias e das esperanças do homem comum. Porque o óbvio demora sessões e sessões a passar pelo filtro retórico do parlamentarês...


Agora são os comboios, dentro de dias, os camionistas, para que todos andemos de papamóvel, mas não consta que o governo, em sinal de tolerância, esteja disposto a oferecer um preservativo em forma de filigrana, da autoria de Joana Vasconcelos, a Sua Santidade. A Câmara de Lisboa prefere manter, no alto do Eduardo VII o projecto da catedral de Santo Antoninho...


Novidades do "day after", apenas a criação de altos tribunais em Santarém para a concorrência e a propriedade industrial, dentro da feira nacional de agricultura, a mudança do parlamento para o Porto, onde não há "lock out", e a instalação da Liga de Futebol Profissional em Campo Maior...


Queríamos saber se Ele sabia. Mas toda a gente sabe que ele, quando é Ele, já não pode saber, embora soubesse o que toda a gente sabia. A teoria da conspiração sempre à procura de uma casca de banana que possa fazer parangona... Ele é quem É. Por enquanto, apenas...


Porque Vara, conforme o previsto, foi festival de retórica, típico dos registos contidos dos políticos de rabo pelado. Brincou ao gato e ao rato sobre a verdade e a mentira, apesar da metalinguagem de Pacheco, nunca quebrou o "não tenho ideia disso... pode perguntar-me cem vezes que eu digo sempre o mesmo". Nada a acrescentar...


Nesta teatrocracia sem emoção nem a audição de Manela aqueceu as almas, porque, afinal, nem ela tinha alguma coisa para dizer. Só Vitalino tentou que ela desvendasse segredos de alcova no tempo do governo dos afonsinos. Estamos condenados ao afunilamento e mandam os que não se assumem como pigmeus que podem ascender à cabeça dos gigantes para verem mais além. Os que mandam são daquela espécie que é capaz de matar o pai, a mãe, os irmãos e os filhos, para obterem um naquito de poder e honrarias, na sua insaciável sede de protagonismo. Somos dominados por psicopatas sentenciadores que, como cadáveres adiados, vão emprenhando de ouvida e reproduzindo os ódios que lhes transmitem os fiéis e aduladores.


Enquanto persistir esta vaidade predadora dos eucaliptos semoventes, a democracia continuará enredada pelas teias da conspiração dos gerontes que pensam deter o monopólio da cultura política e do bom-senso, reproduzindo o esquemático do sebenteiro de uma banal engenharia de conceitos que apenas disfarça os sucessivos plágios de muitas modas que passam de moda. E o crime tem compensado...

25.4.10

Entre animais humanos e animais não-humanos, mesmo com forma dos primeiros...


Leio cuidadosamente o "dossier" do Expresso sobre a operação dita Mercúrio, mas não do cromo. Sou obrigado a concluir sobre o supérfluo da gravitas de uma comissão parlamentar de inquérito, agora em curso de discurso. Para mim, já está tudo, mas mesmo tudo, esclarecido. Basta conseguir ler as linhas e compreender as entrelinhas e não ter que as traduzir para parlamentarês. O que apenas servirá para confirmarmos como certas operações retóricas apenas servem para se medir a distância que vai entre aquilo que se proclama e aquilo que se pratica.

Por outras palavras, com tanto jogo de cintura matosinha e micaelense, a casa da democracia pode gastar-se pelo mau-uso. Pode juntar o pior que há numa investigação judiciária sobre relações jurídicas, as tais que não coincidem, nem podem coincidir, com a vida, e o pior das parangonas do jornalismo tablóide, o que, normalmente, gera expectativas frustradas e pode vir a prostituir-se pelo abuso...

Para acrescer à esquizofrenia, só faltava que um teste de um dos muitos exames de uma escola pública de direito virasse primeira página e pretexto para um duelo de concepções do mundo e da vida, entre o Professor Doutor Paulo Otero e a jovem doutoranda Isabel Moreira, com o primeiro no ouro do silêncio e a segunda na prata da palavra jugular. Não tomarei partido, porque isto da academia não é para partir. Porque, sem ser por acaso, foram, os dois, dos melhores e mais queridos alunos que tive.

Aliás, tomei conhecimento do teste num desses almoços de camaradagem académica, por acaso, momentos depois de o mesmo ter sido lançado nos claustros da escola. Dei-lhe a importância que ele, na verdade, merece, e até gargalhei imaginativamente, observando que, se fosse aluno testado, responderia ao dito como um dia fiz a um teste do meu saudoso professor de direitos reais, Orlando de Carvalho, isto é, demonstrando que, com os dados fornecidos, haveria uma impossibilidade lógica de resolução...

Porque, mesmo com o estímulo provocatório, à boa maneira do Paulo, as relações jurídicas são impossíveis de fecundação pelas concepções do mundo e da vida do jurista que finja que não é jurista. Até porque a personalidade jurídica já não depende do nascimento completo, com vida e figura humana, conforme a letra do Código de Seabra, quando se temiam fantasmagóricas emanações entre animais racionais e animais não-humanos...

Sobre a matéria de fundo, declaro que Paulo Otero é humanamente generoso e academicamente genial, não podendo ser condicionado pela adjectivação diabólica, até pela coragem que sempre demonstrou. E nisto, a Isabel Moreira parece seguir-lhe as pisadas, até no desassombro cívico dos combates que a mobilizam. Ambos são precisos. Para indisciplinarem este cinzentismo de um politicamente correcto que até nem deixa que surja uma terceira via que nos livre da tenaz do branco e do preto, a que nos afunila em crise de convicções.

22.4.10

Abril: sim e seu principio. De Teresa Vieira


Tinham passado já 6 meses depois do 25 de Abril. Muitos andavam com uma espécie de beleza de colo. Parecia que qualquer outra realidade tinha perdido prioridade em ser falada, e agora o que seria preciso, o que era mesmo fundamental, era defender o não empobrecimento da libertação.

E muitas realidades faziam parte de uma espécie de nutrição dos dias. Recordo que o Francisco que fazia parte do nosso grupo, aqui e além, meio a brincar, meio a sério, nos chamava a atenção para as mulheres grávidas que já expunham o quanto o desejo nestas andanças, também implica um apelo ao nascimento de novas gerações.

Eu sentia que a mobilização estava no ar, mas num clima ainda pouco de vindima em seu tempo exacto.

Muitos já ultrapassavam o «ter mais» numa arma perigosa de intoxicar atmosferas sociais e espirituais, havendo grupos que a nível nacional, reivindicavam como seu, um “ produto” que anteriormente entendiam não dever ser pertença de ninguém.

Coisas destes tempos. Havia de facto muita energia centralizada e havia também núcleos que não eram mais do que aquilo que a esperança deles fazia: e eram afinal estes últimos, aqueles para quem o espaço deles e o dos outros sempre existiria.

Comecei a conversar mais com o Francisco acerca de uma certa solidão que aqui e além tornava impotente o individualismo de nos encontrarmos na grande festa. A festa que mudaria o género de vida. Em rigor, queríamos uma mudança construtiva e havia um tempo certo para evitar o suicídio das utopias que refrescam os dias quentes.

O Francisco, o mais avançado de todos nós na Universidade, costumava sossegar-me dizendo: olha que a anticiência e a antieconomia são ideologias de justificação de um sistema e ainda estamos na fase das críticas. Ainda não chegámos à « faculdade de letras e de ciências desumanas» que referiam os estudantes do Maio de 68. Olha que ainda é cedo.

Por mim, até concordava, mas espreitavam-me os comportamentos clones de uma noção de progresso que eu não entendia. Não receava as promessas, mas o prometer.

Contudo, também queria a paz, o pão, a habitação, e a saúde, a gaivota que voava, voava e sobretudo todas estas canções desde que ao adormecer me lembrasse de Fernão Capelo Gaivota no meio desta festa pá e em defesa do futuro.

Depois havia o Tejo nesta cidade maravilha. Havia o Tejo que nos protegia no levar e no trazer, no tempo do dar e do receber, exactamente o mesmo Tejo que testemunhara o bom senso no diálogo de Salgueiro Maia ali perto do Cais das Colunas.

Havia também uma ideia de humanizar uma paisagem de vida, às vezes de jeito tosco. Recordo um senhor muito distinto e que frequentava a missa do meio dia em Sta Isabel me ter dito: sabe a menina que eu até acho que Cristo era socialista, mas não o posso dizer na minha família, donde o voto caladinho é que me guardará o segredo.

Uma outra senhora espampanante nas jóias da missa de Domingo na mesma Igreja, dizia com a pose da bondade possível: ó meu Deus, afinal de que me serviu o casaco de leopoardo ao lado de tantos outros visons, se anda tanta gente com frio, coitadinhos. E acrescentava, não receiem, lá fora também é assim.

Tudo isto envolvia perigos, mas eu estava disposta a corrê-los e o meu grupo também. Achei estranho que tentassem ocupar a casa do meu irmão Zé que concluía na altura a tropa em Leiria. Estava a perder-se até a estética do comportamento? Não sei dizer. Estava de acordo com muitas coisas e pensava-as diversamente.

Nestes momentos, ou Chopin, ou Sérgio Godinho, ou os Poemas de Ponta e Mola, ou Tolstoi, alguém me haveria de valer.

Sentia que vivia num país esfomeado de oposição, em que todos eram espelhos uns dos outros e que havia que romper certas cumplicidades recíprocas, para que não existisse o poder do unanimismo que tende a tratar como criminosos, aqueles que não queriam homologar-se.

E agradava-me o paradoxo ou a sua descoberta mais viva nesta liberdade. Talvez por ele ter sido quase sempre proibido. Se calhar eu até fazia como Unamuno que não acreditava na imortalidade da alma, mas vivia como se nela acreditasse.

Assim, não pensava lá grande coisa da política ou no chegar a algo de perfeito através dela, mas achei que era necessário viver e acreditar como se achasse que sim.

Já então o fenómeno literário fazia parte do meu horizonte e ansiava que ele tivesse uma autonomia na ordem cultural e que ultrapassasse o substituto do real e pudesse, em letras muito gordas, ser sempre um título revisitado de Fernando Pessoa, aquele que sempre disse que “ o mito é o que fica quando tudo o resto desaparece”.

E lá voltava a morte e vida severina numa circularidade de amantes da margem esquerda do Sena.

E lá regressava a voz do povo do Norte de Portugal numa pulsação de acontecimentos significativos, pois que eles sabiam o quanto era preciso roer séculos para ajudar o verde, tal como a ideia de Ramos Rosa.

E lá voltava a memória do tempo futuro com partidos políticos das mil e uma interpretações, desconhecendo nós, até que ponto saberiam que o futuro é a única coisa que podemos mudar se Robert Heinlein não estiver ausente das ideologias.

A dificuldade era também a de não falarmos como os adultos que afinal não tinham tanta importância quanto nós, ainda que as maturidades nos viessem a revelar os segredos quase todos, a verdade é que de nada vale antecipá-los.

E Abril vivia-se também com todos a quererem ter conseguido fazer Abril.

A abertura das prisões proibia que o outro fosse coisa a possuir, mas a responsabilidade era de muitos modos gerida como uma suave tecnologia de maneio.

Ainda assim, não conheci ninguém que me referisse sentir na sua história uma expiação infindável de uma falta original. Não, a culpabilidade mudava de mão em relação a tudo, até para fugir ao olhar da sociedade sobre ela.

Havia também uma normalização mecânica do conceito de trabalhador e de intelectual. Recordo-me. Ponho-me dúvidas ainda hoje sobre se estas palavras alguma vez foram repensadas tal como se nos apresenta o mundo.

Do nosso grupo de cinco amigos, faltou-nos poucos anos depois, a nossa Dulce raptada por uma morte sem juízo e ainda hoje quando nela falamos, sempre sabemos que a nossa memória a segue numa qualidade de viagem que dimensões revolucionárias não explicam, e no entanto foram sentido e iniciação.

E Abril ia sendo também o beijo origem e meta, sim e seu princípio.

Deslumbrava-nos que nada continuasse como dantes.

No meu grupo de amigos éramos peritos em tornar coisas mundanas em coisas extraordinárias. Achávamos que tinha chegado a nossa hora de criarmos um templo à vida.

Em Dezembro fizemos um presépio em minha casa e a Dulce trouxe uma pequena porta de madeira. Colocámo-la à entrada da gruta e por cima da cabana escrevemos:

Eis a pequena porta por onde se pode entrar e ver o Messias.

E numa outra região doutrinal do nosso presépio de 1974, colocámos um pedaço de espelho que fingia ser lago e uma seta de papel indicava-o como sendo o local dos traços do resgate a todo o tempo.

E num futuro diverso e comovido, neste Natal de 1974, demos as mãos sob o céu livre da História.

Teresa Vieira

21.04.10

Sec. XXI

21.4.10

Um imenso império colonial.... sem citar Mário Soares


Adoraria que Cabo Verde fizesse parte de uma república maior, em que também participassem o Brasil e a república dos portugueses que restam. Sonho que, um dia, com Angola, esse seja, mais um passo para a super-nação futura, a do velho triângulo estratégico do Atlântico Sul que el-rei D. Sebastião tentou concretizar sem adequada táctica e consequentes serviços secretos (não reparou que os huguenotes franceses e os anglicanos estavam por trás da facção marroquina que o derrotou em Alcácer-Quibir....). Por isso agradeço que Cabo Verde se tenha tornado independente, para parafrasear o presidente António José de Almeida em 1922, por ocasião do primeiro centenário do acto de D. Pedro IV!

De acrescentar que António José teve uma avaria no navio que o levava a atravessar o Atlântico e não conseguiu chegar ao Brasil a tempo. Estávamos num tempo daquelas crises financeiras que são os nossos normais anormais e só um desenrascado como era o ilustre republicano liberal conseguiu transformar essa vulnerabilidade numa potencialidade ainda citável...

Cabo Verde, um povo africano com cinco séculos de nação, ao tornar-se independente, livrou-se, pelo menos, de ter de aturar certa gerontocracia de algum capitaleirismo lusitano de ausentes-presentes. Há encruzilhadas da história onde os Ipirangas são necessários. Sobretudo quando o velho centro perde a lucidez de ter saudades de futuro.

A estrutura política dos portugueses europeus tem sido sucessivamente reinventada e refundada. O velho Portugal devia, aliás, ter mudado de nome em 1822, tal como em 1975 se encerrou o ciclo do último passo imperial, o da geração de Mouzinho e do imperialismo republicano que nos levou à Grande Guerra e, finalmente, à guerra colonial.

Somos herdeiros de todos os ciclos imperiais da nossa história. O primeiro, foi o marroquino, entre a conquista de Ceuta e o abandono de Mazagão. O segundo, foi o do Oriente que, simbolicamente, terminou em 18 de Dezembro de 1961, mas ainda permaneceu em Timor e Macau. O terceiro foi o do Brasil, até 1822. O quarto e último foi o africano, o desencadeado nos últimos anos do século XIX...

A chamada descolonização exemplar, ainda gerou uma foram anti-imperial de procura do além: a integração europeia, desencadeada a partir das memórias da emigração dos anos de 1960, na geração da mala de cartão. Só agora começamos a regressar à Lusitânia e à frustração dos Habsburgos. Mas não há 1640 no horizonte, porque a principal consequência do 1º de Dezembro foi a construção do Brasil!

Por outras palavras, só poderemos superar a frustração imperial pelo sonho do abraço armilar. Mas ainda faltam algumas décadas para inventariarmos as nossas memórias das várias sementes lançadas pelo Portugal Universal, decepando o neocolonialismo pretensamente anticolonialista que ainda nos amargura...

PS: O célebre cartaz de propaganda é da autoria do inspector superior colonial Henrique Galvão, o mais anti-salazarista de todos os anti-salazaristas, mas delineado quando ainda ele era salazarista, coisa que o deixou de ser quando teve a coragem de, na própria Assembleia Nacional, apresentar um relatório sobre o trabalho forçado que logo o jornal clandestino do PCP, o "Avante", editou...

19.4.10

A democracia pode ser usurpada pela partidocracia...


A democracia pode ser usurpada pela partidocracia, uma gangrena do Estado (Caboara), e tal sistema enredar o regime, especialmente quando somos marcados pelo abuso de posição dominante dos representantes das principais multinacionais partidárias da Europa...

Se, com a vitória da AD, a partir de 1980, encerrámos o fatalismo do partido-sistema da I República, quando Soares e o PS sonhavam com a mexicanização do partido revolucionário institucional, clamando pela TINA ("there is no alternative"), mantivemos, contudo, o atavismo de certo rotativismo devorista da monarquia liberal...

E rotativismo, alimentado pelo patrimonialismo das forças vivas, pode levar a que as decadências dos crepúsculos durem uma ou duas décadas, dando a ilusão aos comandantes da alternância que mão serão coveiros do regime...

O PSD de Passos Coelho assume uma regeneração vinda de dentro de um dos partidos doentes, quando se libertou do cavaquismo sem Cavaco e do barrosismo sem Barroso e dos consequentes processos dos ausentes-presentes... Mas o novo discurso instaurado, se falhar pela falta de autenticidade, pode não propagar o estilo ao PS. Deste modo, apenas ficaremos condenados à democracia por razões geopolíticas, sofrendo os efeitos de a maioria dos factores de poder já não ser doméstica, ou intra-nacional...

O português comum não assume a utopia como sítio sem lugar e sem tempo. Prefere o Canto IX d' "Os Lusíadas" ou uma casa tipo "maison", na santa terrinha. Por isso, é um "sonhador activo" e está farto de "traduções em calão" de democracias exógenas...

Importa que a partidocracia compreenda que há um povo com fome de causas e uma pulsão para a solidariedade. Faltam é engenheiros de sonhos que nos mobilizem e assumam as nossas visões de paraíso bem terráqueas, da procura, no aqui e agora, da beatitude celeste, como Sérgio Buarque de Hollanda caracterizou o "português à solta"...

17.4.10

Os pássaros atentos (ainda Abril). De Teresa Vieira


Ele é visceralmente contra um estado de espírito como o nosso. Ele nem o compreenderia sequer. Ele sabe dar receitas como uma dona de casa, certo de que o Estado se reúne na cozinha em hora de arear o fogão.

Assim nos referíamos a Pinochet enquanto escutávamos as notícias daquele país amarrado, enquanto estabelecíamos paralelos com Salazar.

E o Luís até dizia que o mundo se construiria em liberdade, a partir dos pólos opostos plantados por estes personagens que, ainda assim, conheciam a subtileza malandra no raptar da consciência individual, razão pela qual, em protecção do futuro, deveríamos estar mais atentos.

Falávamos de Pinochet ao mesmo tempo que nele colocávamos todas as sociedades governadas por pinochês, o que nos fazia ainda mais orgulhar da jovem novidade que o 25 de Abril nos propunha em plena conciliação com uma outra vida.

Para nós, diga-se, os regimes totalitários de direita ou de esquerda eram tão cilindradores do mínimo vital de sobrevivência, quanto o era numa perspectiva trituradora, o pior de uma qualquer estrutura de raciocínio monolítico. Isso, julgávamos que tínhamos por bem sabido.

Mas, diria, que o que mais nos confundia no explicar do que íamos vivendo era, na verdade, esse sentimento que nos era comum e que nos levava à conclusão evidente de que acreditávamos bem mais na dinâmica que sentíamos na libertação, do que na tal liberdade, que ainda nos parecia demasiado estática e propriedade a mando de alguns.

Atravessávamos o Jardim da Estrela quase todos os Domingos ao final da tarde. Respirávamos as árvores com a devoção de quem tudo agradece depois de um certo momento da vida para a frente.

Um dia, sentámo-nos numa borda de relva do referido jardim e recordo-me de ter dito que tinha escutado uma estória mirabolante e que envolvia a P.I.D.E. Mais ou menos isto: a P.I.D.E prendia o senhor A e depois todas as pessoas que o iam visitar à prisão, ou ficavam presas também ou grudava-se-lhes o estatuto de suspeitos.

Queres dizer com isso que podemos estar sob espreita também daqueles que agora mandam? Pergunta a Dulce.

Não é isso, respondi, é mais o receio dos que querem subir na vida através das maneiras de salvar o mundo. Acho que são um perigo público. Acho que os sinto até nas pastelarias e, contudo, não sei dizer exactamente quem são. Receio os que leram muito e os que discutem muito os livros e os filmes e receio os das couves das províncias urbanas. E não te sei bem dizer o que este sentimento tem a ver com a prisão do senhor A e de todos os outros.

Fez-se um silêncio sem pausa nos olhares. Aí, como quem faz doação permanente da esperança, acrescentei que se calhar não era nada como eu estava a dizer, ou que se calhar nada era mais do que a praia-mar e a baixa-mar a ensinar-nos que há nas marés vivas algumas rupturas. Pois, era isso. Fazia parte da sucessão dos dias e das noites, compreender. Fazia parte do nosso projecto, compreender. Era isso.

O Rui que até então se mantinha calado, olhou-nos e disse:

- Eu ando também um pouco extravagante. Como sabem a minha avó morreu há dois meses e agora tenho pensado que ela regressa ou que me vai escrever uma carta. Isto devo ser eu na baixa-mar. Não é?

Rimo-nos todos num acto de súbito e enternecedor e inominado juramento.

E de repente era tudo tão amplo naquele Jardim da Estrela. Era tudo tão novo. Era também físico e olfactivo o tal compreender.

Estávamos ali numa condição maravilhosa, sem nome.

Por sob as pálpebras a dimensão das folhas húmidas; nos lábios, as palavras em círculo como se retornassem de uma volta ao mundo e nos agrupassem as ideias.

E afinal, enfim, nada era muito mais do que o mecanismo misterioso do teatro do mundo a entrar em funcionamento: os pássaros, esses, atentos.

Teresa Vieira

17 de Abril de 2010

Sec. XXI

(Imagem picada aqui)

14.4.10

Quem está mal, muda-se, entra em cisma, torna-se herético, protesta em Reforma


Vou mesmo falar do Vaticano, depois das declarações de ontem do cardeal Bertone. Para dizer que dois mil anos depois, não podemos confundir a floresta com algumas das suas árvores. E quem está mal, muda-se, entra em cisma, torna-se herético, protesta em Reforma ou advoga uma Contra-Reforma...

Por mim, que estou de fora, com mais cinco séculos em estoicismo, apenas posso coincidir em irmandade, nunca como inimigo, ou com a raiva de dissidente. Logo, reconheço que Bento XVI é bem mais do que a imagem com que ele se enredou na comunicação social global. A coisa é bem mais complexa do que uma consulta de sexologia, tem a ver com a metafísica!

No país da Casa Pia, atirar pedradas ao Vaticano por causa da pedofilia é não reconhecermos que tanto os Estados como as Igrejas ainda não sabem fazer justiça nesses casos concretos e padecem da falta de autenticidade típica das organizações de homens concretos de carne, sangue e sonhos...

Todos conhecem qual era a tradicional postura eclesiástica sobre tais infracções, remetidas para a clausura da autonomia do direito canónico, com o silêncio e o ostracismo, mesmo quando o trabalho de pesquisa já estava inventariado pelo próprio jornalismo de investigação que, aliás, continua a cooperar, remetendo certo...

Esta postura eclesiástica tradicional também foi a seguida pelos primeiros tempos da nossa democracia, quando os pais-fundadores tiveram de ostracizar alguns destacados corruptos da partidocracia. Foram imediatamente afastados, mas não se deixou que o público conhecesse os pormenores da trama...

Outros são hoje os sinais dos tempos e as pesadas máquinas do eclesiástico e do estadual demoram a adaptar-se às novas circunstâncias e a uma moral social intolerante para com pedófilos e corruptos. De qualquer maneira, não se confunda a árvore com a floresta e exija-se que o primeiro exemplo venha do jornalismo de investigação que, mais uma vez, não deve ser arrastado pelas parangonas dos chamados tablóides...

13.4.10

Viagem aos meandros sub-estatais do sistema elogiado pelo banqueiro do regime...


O regime vai falando endogamicamente, para as suas próprias tripas e volutas: diz pensar nas escolas-seminários do circuito fechado da subsidiologia; diz punir a corrupção, pedindo discursos a sobrejuízes, super-polícias, ex-criadores de elefantes brancos e oficiais de diligências de planos de combate à dita, todos postos em acetatos e "powerpoint"...

Suas Senhorias estão todos de consciência tranquila e irão todos à missinha de Sua Santidade em pleno Terreiro do Paço remodelado, porque a música celestial, a literatura de justificação e os barcos a remos que partem do Cais das Colunas os podem levar sempre à outra banda, para voltarem, de barco à vela, em dia de nevoeiro e buzinão...

Os pequenos e médios micro-autoritarismos subestatais, plenos de "outsourcing" e de paradigmas enrolados, vão gaguejando as modas que passam de moda, com que os cursilhos para altos dirigentes os formataram, num misto de saudades estalinistas, barroquismos teológicos e meia dúzia de neologismos do tecnocratês gestionário...

Os pequenos e médios altos dirigentes do SIADAP, e da avaliologia suicida, continuam a ganga do construtivismo destruidor, em que sublimaram o revolucionarismo frustrado. E assim se perpetua o despotismo ministerial, entre seminaristas frustrados, doutores da mala ruça, salazarentos ajaconizados, educacionólogos e cantilenas neopombalistas, a que chamam integração europeia ou turismo científico, assim enobrecidos pelo terceiro mundo cá do contenente....

Qualquer modernizador que pensa ser reformador encartado julga que, por usar duas ou três palavrões do calão anglo-americano, de contratar as consultadorias dos cartões de visitas dos formadores, ou de se envolver no neofeudalismo clientelar do "outsourcing", se torna, "ipsofacto" engenheiro social, mesmo sem reconhecimento da Ordem....

O Estado é este estado a que chegámos, porque persiste o inquisitorialismo, a persiganga e o antiquado despotismo ministerial, quando quem está em cima é exactamente igual a quem está em baixo: instrumentaliza a máquina dependente da cobardia e do carreirismo oportunista!

Até algumas autarquias locais querem serem Estados absolutistas em miniatura. Sobretudo as que se suburbanizam em dormitórios e se destribalizam, com autarcas entalados entre engenheiros de pontes, calçadas, lombas e parques de estacionamento e frustrados professores do ensino secundário. Todos deixam de compreender a pluralidade identitária dos povos que foram chamados a governar...

Algum autarquismo de paraquedistas politiqueiros pode volver-se em mero agente colonizador do centralismo e do capitaleirismo, servindo inconscientemente abstracções unidimensionalizadoras, mesmo que o activista comandante não consiga que o verniz socialista, ou social-democrata lhe apague o rasto do teólogo sem Deus, ou do revolucionário sem ideia...

12.4.10

Somos todos polacos!


Morreu o Presidente da Polónia e quase uma centena de altos dirigentes de Varsóvia. Dirigiam-se à Rússia, para as comemorações do massacre de Katyn, quando, em 1940, o estalinismo assassinou cerca de vinte mil membros da elite político-militar da Polónia livre. Lech Kaczynski, até há pouco ridicularizado por certa politiqueirice ocidental, era um resistente ao comunismo da geração do Solidariedade e da ascensão ao papado de João Paulo II. E tinha como valor supremo uma pátria que foi vítima dos totalitarismos nazi e comunista. Hoje, é uma das fronteiras orientais da nossa liberdade europeia. E na Rússia já não residem as garras da vingança, mas os sinais libertacionistas de Soljenitsine, embora, de ambos os lados haja expectativas frustradas e sonhos por cumprir. Mas o caminho da casa comum europeia e da democracia pluralista e justa faz-se caminhando e semeando, de geração em geração, peregrinando aquelas raízes profundas que nos podem dar saudades de futuro.

9.4.10

Abril 1974: o desafio, a experiência fundamental. De Teresa Vieira


Quando desci a Av. Fontes Pereira de Melo no dia 25 de Abril à noite, reparei nos turistas do hotel Sheraton com o pasmo no rosto, a verem as tropas sem cessar rua acima e rua abaixo. Estavam calmos os turistas, tinham nos olhos uma aventura infantil, difícil de descrever. Um deles disse «c´est une révolution poétique!» E fotografavam tudo o que podiam.

Realmente Abril apoderara-se das ruas em convívio festivo e instaurando uma prática transgressora de um não sei quê que me fazia pensar nos acontecimentos-esfinge tal como os imaginava.

Éramos cinco amigos, três rapazes e duas raparigas, todos quase, quase na idade de votar e não sabíamos interpretar esta nova prática do dia de Abril que acontecia assim, e que implicava intervenção, exercício de poder, linguagem, comportamentos, enfim, perspicácias que não tínhamos ainda.

Entre nós decidimos chamar a este dia 25 de Abril “O dia do possível” . E achámos bonita esta designação. Achámos que significava desafio, experiência fundamental.

Para nós, o que estava a acontecer,era algo definido mas incerto. Contudo, a incerteza era em nós dinamizadora e não factor de imobilismo: daí o desafio de termos saído à noite atravessando a pé as principais artérias de Lisboa.

O Luís lembrou-se que na Capela do Rato nos tinham dito que nas paredes da Sorbonne no Maio de 68 estava escrito «Não tenho nada para dizer mas quero dizê-lo».

Concordámos todos em silêncio com o que o Luís nos queria transmitir. Um pouco mais tarde, já na Av. da Liberdade, questionei o grupo, dando à voz um tom solene, a acrescer à pergunta:

- Isto é o momento em que nasce e se impõe a supremacia da imaginação sobre a realidade!?

- Não sei – respondeu a Dulce – mas sinto que o essencial está por dizer e que afinal não temos cultura política para interpretarmos o que está a acontecer. A minha mãe – continuou - disse-me muito zangada que se eu saísse de casa hoje, para ir ter convosco, ia entrar por uma brecha que me fecharia dentro dela e nunca mais nos víamos.

Pois, não sei, pensei para mim, mas achei que estava no meio do desafio de um nó que já não me ignorava. Achei que assistia ao levantar da democracia e que ela se estava a espreguiçar de um longo sono , e entendia-a como a descoberta do que me era estrangeiro. E isso bastava-me para acenar aos soldados que para nós erguiam os cravos.

O Rui que era o intelectual pessimista do nosso grupo, a dada altura, exprimiu o seu receio face ao amanhã e dizia que se até ao dia 1 de Maio próximo, se continuasse a ter a sensação de que nascia outro modo de vida, então ele acreditaria que já não iria para o ultramar com o reconhecimento oficial de que podia matar.

Concordei e disse ainda que não era preciso aguardar pelo 1 de Maio. O que era preciso era preparar eleições e não permitir que elas fossem um mero folhetim para que a era democrática se não auto apunhalasse.

E entretanto aproximaram-se alguns soldados e gritaram-nos:

- Para casa, vá para casa depressinha! A hora não é de passeio.

E todos nós achámos que existia uma ternura imensa na voz de quem se nos dirigia armado. Recordo que imaginei de súbito a sair daquele cano de aço da arma de um deles, um sopro de pétalas de indecifráveis cores de nobres ideais.

Enfim, era a esperança colectiva àquele grupo de cinco de se libertar de um doutrinarismo de raiva seca e frustrada que, de um modo ou de outro, entendíamos, ao jeito da nossa idade a razão última do existir deste fantasma real.

Lembrei-me dos viveiros da Ericeira e achei que lá dentro o mar chorava por uma outra forma de existir e que essa forma ansiada era esta: sem orla.

Demos as mãos, os cinco. De súbito. E não engoli o choro do que não entendia por completo. Antes, as lágrimas diziam-me que hoje o dia não era para impor respostas, nem linhas políticas. O dia era tão só para ser preferido.

Desconhecia se o futuro me pertencia, mas queria aquele presente meu e tão seguro, quanto certo era que apenas vivíamos muito, e às vezes apenas, a vida que nos deixavam.

A dada altura, achámos que nos devíamos abraçar todos num controle único de força que festeja a festa que dança uma verdade, que acredita na realidade dos desejos e numa conciliação que ainda não entendíamos, mas raiz.

Sentimo-nos muito especiais, um tanto ilhéus de uma resistência na protecção de todos os sonhos. Sonhos de gente jovem de tão jovem que recusávamos o poder para recrutarmos a utopia.

Também imaginei que um dia aquele 25 de Abril estaria em livro, e que a partir daí ,algures no mundo, todos podiam encontrar-se com o que estávamos a viver naquele dia, naquela noite em que Portugal se pensou.

M. Teresa Ribeiro Bracinha Vieira

8.04.10 – sec. XXI

6.4.10

Muitos portugueses são dotados de uma ponta de misticismo...



Ontem, lá fui à minha santa terrinha, numa conferência que tinha como pretexto invocar carbonária, maçonaria e república, no contexto da implantação da república. Foi emotivo esse regresso à memória de menino e moço desses campos, marcado pela experiência política dos meus seis anos de idade, quando vi pela primeira vez a colar um cartaz de propaganda política nas paredes da casa da minha avó, no Largo da Praça de Cernache: era o Dr. João Ribeiro que afixava um de Arlindo Vicente, antes de se tornar num apoiante de Humberto Delgado.

E comecei, precisamente, por homenagear esse santo laico da minha infância, talvez o resistente anti-salazarista da zona que mais vezes deve ter sido preso e que, para mim, se tornou no paradigma de um político que sempre viveu como pensou e que, nem depois da vitória das suas ideias, no 25 de Abril de 1974, se conformou. Encontrei-o, um dia, no tribunal, onde fazia estágio de advocacia: tinha voltado a ser detido, agora, conspirando num dos grupos de extrema-esquerda contra o situacionismo do PREC... O meu querido dr. Ribeiro que a tantos fez bem, com o seu dois cavalos, circulando de aldeia em aldeia, de casa em casa, tratando de toda a gente, sem máquina registadora de pagamento de consultas, foi um semeador de sonhos a quem continuarei fiel para sempre.

A conferência foi também um pretexto para o meu luto. Porque a minha querida Ana era trineta do Francisco de Lemos Ramalho, que nunca usou o título de Conde de Condeixa, o tal que fugiu de casa aos 14 anos para servir no cavalaria 4, que lutou do lado miguelista, mas que, depois, renunciou, para voltar às armas com a Patuleia, à frente de 600 homens que armara e equipara. Também não aceitou ser Marquês de Pereira, título oferecido por D. Maria II a quem hospedou, juntamente com D. Fernando e o futuro D. Pedro V.

E que dizer da carbonária, depois desta mistura de setembristas e legitimistas? Que a velha sociedade napolitana, surgida entre 1807 e 1810, contra a ocupação napoleónica, tinha a mesma explosividade de idênticas sociedades secretas portuguesas que resistiram a El-Rei Junot e que, na pequena pátria dos campos de Coimbra, se destacou o maçon José Bonifácio, em nome da liberdade portuguesa, para, depois, erguer o sonho da independência brasileira que foi a melhor maneira de se reproduzir Portugal à solta no lado de baixo do Equador.

Porque houve sempre muitas carbonárias: a de 1848, ligada a José Estêvão (o filho deste, Luís de Magalhães, ministro dos progressistas, há-de casar com uma descendente de Francisco Lemos Ramalho, e terá destino paradoxal de crente, quando assume a legitimidade de líder político da Monarquia do Norte, em 1919, mas sempre em amiga relação com os republicanos, como o demonstrou a defesa que teve em tribunal de Basílio Teles); a de 1862, ligada ao Partido Regenerador de Coimbra, com o Padre António de Jesus Maria da Costa); ou a de Artur Duarte da Luz de Almeida, recriada em 1897, onde vai enfileirar António Maria da Silva que, nas suas memórias, nos desfaz o mistério de uma organização mobilizadora, porque, segundo as suas próprias palavras: muitos portugueses são dotados de uma ponta de misticismo; e, para esses, era de capital importância a liturgia, principalmente para os mais humildes.

Descansem, leitores, não vou reproduzir a conferência, nem registar o debate. Emociou-me a presença inesperada de António Arnaut, bem como de companheiros da blogosfera, como o Almocreve das Petas, o Almanaque Republicano e o Prosas Vadias. Agradeço as palavras do José Fanha e até provoquei o meu querido António Arnaut para ele explicar a simbólica maçónica do brasão do concelho de Condeixa-a-Nova, inspirada pelo também maçon Rodrigo da Fonseca.

Voltei à minha pequena pátria moçárabe dos campos de Coimbra, entre a serra e o mar, onde há sinais de uma república maior, a de Portugal a caminho do Sul, esse que lutou em Aljubarrota, que resistiu no cerco de Lisboa, que elegeu o rei nas Cortes de Coimbra e que a todos nos fez porto de partida para o navegar é preciso do abraço armilar.

E não deixei de homenagear os meus avoengos, mais da patuleia do que da capitaleira carbonária, esses resistentes da Revolta do Grelo e da revolta de Cernache de 1936. Foi com eles que soletrei os sinais da terra prometida e dos planetas que nos dão esse além de um mundo sem fim, o da espiritualidade, mesmo quando herética e neopagã (veja-se o S. Mateus de Soure, a queima do Judas em Cernache ou as cavalhadas do Espírito Santo em Vila Pouca, mesmo quando apenas autorizadas no Santo António). Sobretudo, o valor do trabalho, de sol a sol e de lua em noites de rega, e o sentido do sagrado da propriedade humanizada do minifúndio que permitiu o individualismo e o familiarismo da casa, da horta e do pinhal, essa enraizada liberdade na comunidade viva das tradições.

As minhas origens, de nobre linhagem plebeia, regeneraram-se nesta breve viagem ao sonho que me deu sentido de luta. A memória viva da companhia da Ana, ela que nunca usou o nobiliárquico de "Azeredo Coutinho", porque sempre se disse "Ana Fraga", obrigam-me a ser fiel à tribo e aos meus. Daí que, em plena comemoração do centenário da república, tenha continuado a proclamar o meu liberdadeirismo azul e branco, defensor da restauração da república... mas com a posterior eleição do rei. E o ambiente dos meus amigos, colegas e irmãos da assistência, maioritariamente antimonárquicos, apenas demonstrou como não posso ser, como realista antigo, anti-republicano. Até recordei o "Livro da Virtuosa Benfeitoria" do Infante D. Pedro, talvez o primeiro tratado político em português, o do ambiente da constituição política de 1385, que o grupo republicano da Biblioteca Pública do Porto editou...

PS: Eliminei segunda imagem. Obrigado!