a Sobre o tempo que passa: Uma travessia no século: bom dia pé! De Teresa Vieira

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

28.5.10

Uma travessia no século: bom dia pé! De Teresa Vieira


Uma travessia no século: bom dia pé!

Quando o messianismo desaparece pode-se reconhecer também o quanto África pode ser o futuro.

O continente da fome e das feridas abertas a muitas indiferenças do ocidente, pode auxiliar também a democracia, inclusive para que esta sobreviva às ilusões e, quem sabe, se a essência dela poderá encontrar os seus mais fecundos fundamentos, na legitimidade que África pode ter com os benefícios da mola desta forma de exercício do poder.

A contribuição de uma nova África para com as sociedades também sem tranquilidade histórica, não obstante as aparências, pode mostrar-se o preenchimento de uma falta universal que é a da solidariedade real

A bofetada de luva viria da Africa-Mulher-Mãe de Consistência. Viria de um povo pouco escutado e só visto a bater-se e a morrer em campos minados e nunca desvitalizados de um poder à escala mundial.

Em África o potencial de reivindicação dos povos é impressionante e não pode perder-se numa violência que contradiz os direitos que muitos anseiam ver concretizados.

Tenho para mim que África é um foco de universalidade e de universidade, no sentido de que constitui um futuro que pode emergir numa sensibilidade ao direito que é, sem dúvida, índice de um pensamento universal.

Não pode África, neste papel nuclear de potenciar passagens de futuro, compactuar com as rotas do dinheiro fácil, abertas sem fronteiras à destruição e anulação dos próprios povos.

Em África o pão e a culpa desmentem a igualdade no tratamento humano, mas África, a África rica, pode espalhar-se pelos seus filhos e em qualquer mundo num manifesto alternativo.

Cremos que o futuro da humanidade não passará tanto pelas novas descobertas científicas, mas sim pela utilização do já conhecido ao serviço de todos.

Só as sociedades alienadas se resignam àquilo em que a tecnologia as transforma. Assim é tempo de ajudar os homens a reencontrarem-se e a construírem um futuro à sua medida. É tempo de pararem as explosões sociais incontroláveis que apenas se impõem pela violência.

Talvez que Portugal possa ser uma síntese de esperança se compreendeu a falência das planificações centralizadas ou a opressão do consumismo apesar da utilização maniqueísta dessas duas realidades.

Camus, Lefort, Merleau Ponty, Levi-Stauss, Castoriadis, todos eles sacralizaram as revoltas, mas em verdade se diga que acima desta perspectiva se encontrava o levar o homem à construção do grande caminho inacabado.

É neste sentido que se refere a síntese da esperança que acima se mencionou.

É necessário também que África se recorde do Portugal de hoje e que ofereça sem raivas, a medida em que as aspirações de um mundo similar nos une e, reconheça também o continente africano, o quanto tem sido co-responsável por rupturas suicidas e pela destruição inútil de milhões de seres humanos.

Não basta propor o sol, o vento, o mar. O mundo não pára como um relógio nos entretantos das reparações de que carece.

O sentido do tempo e do instante fazem a diferença entre evolução e ruptura.

Recordo Kafka:

Os leopardos invadiram e beberam o vinho dos vasos sagrados. Esse incidente repetiu-se com frequência. Por fim, chegou-se a calcular, de antemão, a hora do aparecimento das feras. E a invasão dos leopardos foi incorporada ao ritual.

Todos somos chamados às responsabilidades, e sobretudo os celestiais seres da perfeição, aqueles que se colocaram à margem dos erros cometidos. E foram muitos, diria mesmo que sobre esses nem os juízos de valor cuidam em horas de férias.

O grande esforço de libertação é o de nos libertarmos do medo à liberdade.

Agora mais do que nunca, deve surgir também um Brasil alternativo, generoso, imaginativo, um Brasil que não marginalize o próprio povo, que não se abrace em festas irreflectidas, um Brasil que não vacile nos conclaves destruidores de cada lugar-centro de vida.

Há uma Lua belíssima que nasce todas as noites nos países de língua portuguesa. É uma Lua cujos reflexos por entre as terras mais remotas, os mares e os néons, dá as mãos e saúda as falações destes povos cuja morada é a língua portuguesa e que se não despede nunca, antes é o canal ou a reza de um terço que jamais se separará das suas contas.

E Brasil também é África, tal como a Europa também é mundo e tal como o mundo é uno num grosso volume de caminhos.

Todos sabemos ou sentimos que não queremos sociedades sem tranquilidade histórica. Quase todos preferimos que Deus venha quando alguém está pronto. E é nesta alquímica oportunidade que a vida pode ter momentos inesquecíveis enquanto templo de cada um.

À la recherche du temps perdu como uma procura de liberdade condicional? Não!

Não! à falta de estrutura humana. Não às exiguidades disponíveis! Não ao ficarmo-nos pelos sonhos dos outros.

Depois de nados-mortos todos os imperialismos há que prosperar e desenvolver os canais de um tempo à frente. De um tempo sem colonização da publicidade, de um tempo sem entupimentos das economias, um tempo como dizia John Sharkey em que as pedras com buracos eram colocadas à entrada das câmaras funerárias: símbolo da passagem do nascimento.

E África num mundo de pé direito alto na sua primordialidade, na sua anterioridade, num outro processo de iniciação de mãos dadas ao mundo, para que ela, enquanto mundo se analise, e nós através dela numa experiência que a todos pasma, possamos perguntar: quem tem medo de uma nova filosofia da economia?

E dizer todos os dias pela manhã, como um dia li : bom dia pé! Que bom que é ter um pé, isto é dois.

E a voz disse:

Sei que morrerei na esperança, mas essa esperança é preciso fundamentá-la.

M. Teresa B. Vieira

27.05.10