a Sobre o tempo que passa: Abril 1974: o desafio, a experiência fundamental. De Teresa Vieira

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

9.4.10

Abril 1974: o desafio, a experiência fundamental. De Teresa Vieira


Quando desci a Av. Fontes Pereira de Melo no dia 25 de Abril à noite, reparei nos turistas do hotel Sheraton com o pasmo no rosto, a verem as tropas sem cessar rua acima e rua abaixo. Estavam calmos os turistas, tinham nos olhos uma aventura infantil, difícil de descrever. Um deles disse «c´est une révolution poétique!» E fotografavam tudo o que podiam.

Realmente Abril apoderara-se das ruas em convívio festivo e instaurando uma prática transgressora de um não sei quê que me fazia pensar nos acontecimentos-esfinge tal como os imaginava.

Éramos cinco amigos, três rapazes e duas raparigas, todos quase, quase na idade de votar e não sabíamos interpretar esta nova prática do dia de Abril que acontecia assim, e que implicava intervenção, exercício de poder, linguagem, comportamentos, enfim, perspicácias que não tínhamos ainda.

Entre nós decidimos chamar a este dia 25 de Abril “O dia do possível” . E achámos bonita esta designação. Achámos que significava desafio, experiência fundamental.

Para nós, o que estava a acontecer,era algo definido mas incerto. Contudo, a incerteza era em nós dinamizadora e não factor de imobilismo: daí o desafio de termos saído à noite atravessando a pé as principais artérias de Lisboa.

O Luís lembrou-se que na Capela do Rato nos tinham dito que nas paredes da Sorbonne no Maio de 68 estava escrito «Não tenho nada para dizer mas quero dizê-lo».

Concordámos todos em silêncio com o que o Luís nos queria transmitir. Um pouco mais tarde, já na Av. da Liberdade, questionei o grupo, dando à voz um tom solene, a acrescer à pergunta:

- Isto é o momento em que nasce e se impõe a supremacia da imaginação sobre a realidade!?

- Não sei – respondeu a Dulce – mas sinto que o essencial está por dizer e que afinal não temos cultura política para interpretarmos o que está a acontecer. A minha mãe – continuou - disse-me muito zangada que se eu saísse de casa hoje, para ir ter convosco, ia entrar por uma brecha que me fecharia dentro dela e nunca mais nos víamos.

Pois, não sei, pensei para mim, mas achei que estava no meio do desafio de um nó que já não me ignorava. Achei que assistia ao levantar da democracia e que ela se estava a espreguiçar de um longo sono , e entendia-a como a descoberta do que me era estrangeiro. E isso bastava-me para acenar aos soldados que para nós erguiam os cravos.

O Rui que era o intelectual pessimista do nosso grupo, a dada altura, exprimiu o seu receio face ao amanhã e dizia que se até ao dia 1 de Maio próximo, se continuasse a ter a sensação de que nascia outro modo de vida, então ele acreditaria que já não iria para o ultramar com o reconhecimento oficial de que podia matar.

Concordei e disse ainda que não era preciso aguardar pelo 1 de Maio. O que era preciso era preparar eleições e não permitir que elas fossem um mero folhetim para que a era democrática se não auto apunhalasse.

E entretanto aproximaram-se alguns soldados e gritaram-nos:

- Para casa, vá para casa depressinha! A hora não é de passeio.

E todos nós achámos que existia uma ternura imensa na voz de quem se nos dirigia armado. Recordo que imaginei de súbito a sair daquele cano de aço da arma de um deles, um sopro de pétalas de indecifráveis cores de nobres ideais.

Enfim, era a esperança colectiva àquele grupo de cinco de se libertar de um doutrinarismo de raiva seca e frustrada que, de um modo ou de outro, entendíamos, ao jeito da nossa idade a razão última do existir deste fantasma real.

Lembrei-me dos viveiros da Ericeira e achei que lá dentro o mar chorava por uma outra forma de existir e que essa forma ansiada era esta: sem orla.

Demos as mãos, os cinco. De súbito. E não engoli o choro do que não entendia por completo. Antes, as lágrimas diziam-me que hoje o dia não era para impor respostas, nem linhas políticas. O dia era tão só para ser preferido.

Desconhecia se o futuro me pertencia, mas queria aquele presente meu e tão seguro, quanto certo era que apenas vivíamos muito, e às vezes apenas, a vida que nos deixavam.

A dada altura, achámos que nos devíamos abraçar todos num controle único de força que festeja a festa que dança uma verdade, que acredita na realidade dos desejos e numa conciliação que ainda não entendíamos, mas raiz.

Sentimo-nos muito especiais, um tanto ilhéus de uma resistência na protecção de todos os sonhos. Sonhos de gente jovem de tão jovem que recusávamos o poder para recrutarmos a utopia.

Também imaginei que um dia aquele 25 de Abril estaria em livro, e que a partir daí ,algures no mundo, todos podiam encontrar-se com o que estávamos a viver naquele dia, naquela noite em que Portugal se pensou.

M. Teresa Ribeiro Bracinha Vieira

8.04.10 – sec. XXI