a Sobre o tempo que passa: Sete pedacinhos de mais além em domingo de chuva

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

3.1.10

Sete pedacinhos de mais além em domingo de chuva

1

Acordo. A chuva inunda as ruas. O primeiro domingo deste último ano da década é um acontecimento que nunca mais se repetirá. Porque pode ser vivido por milhões de seres que também nunca se repetirão.


2

Os homens ditos comuns são coisas que intelectuais, políticos e produtores do videopoder desleixam, como simples massa ou multidão, violável pela solidão. Porque tais manipuladores do "agenda setting" olham os seus semelhantes como pasta a cilindrar pelo rolo compressor da mensagem com que nos procuram profanar...


3

Esses pretensos homens-mais-do-que-homens parecem esquecer que há uma reserva inalcançável dentro de cada um, a da dignidade da pessoa humana, a tal que só pode desabrochar em ser quando se descobre além, ao compreender que, por dentro de si mesma, é que tais coisas realmente são...


4

O sopro do eterno não vem do hábito nem do monge, mas daquele acaso procurado que o sagrado deixou no mais íntimo e mais divino de quem somos. Se somos deste lugar e deste agora, há, no mais secreto do tempo que passa, o que, estando aqui, é aristocraticamente de todos, essa procura incessante de um sinal que nos dá o mais além.


5

Diante de um desses normais anormais da natureza, de pouco valem discursos de presidente ou sermões de cónego. Os profissionais do sagrado, e os seus comentaristas e glosadores, são tão profanos quanto os praticantes acríticos de qualquer fé, incluindo a da religião secular.


6

Todos nos dividimos e separamos apenas por não sabermos quem na verdade somos. São ondas em fúria, a Norte, terras deslizando, a Sul, um vulcão nas Filipinas, ou uma depressão tropical nas Linhas de Torres. É o normal anormal da cultura contra o que estava aqui antes de o homem se acrescentar, inventando obras sobre a paisagem, incluindo a casa, a praça pública, o livro ou o um milhão e duzentos mil portugueses que comunicam pelo "Facebook", inventando como brincadeira de rapaziada para os dormitórios de Harvard.


7

Não existe apenas aquilo que pode medir-se e experimentar-se, em laboratório ou tabelas de registo de obra feita. Há também um todo a que só pode aceder-se pela intuição da essência. A que exige conversão, litúrgica ou poética, ao risco da mudança, nessa mistura de aventura e pragmatismo, a que se chamam viver em comum.