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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

19.11.09

Se tudo ficar no congelador do silêncio, daqui a meses é só calhau e bonecada


Rodrigo Santiago, advogado da minha pequena pátria com quem ainda me cruzei nos Gerais, confirma que sucateiro de Esmoriz "é apenas a ponta de um iceberg" de um complexo processo que pode "envolver figuras da hierarquia do Estado" (Jornal I). Infelizmente, o tempo está frio demais para que a neve derreta. Se tudo ficar no congelador do silêncio, daqui a meses é só calhau e bonecada. Outros jornais falam de processo bastante complexo, como se algum processo que envolvesse compra e venda do poder fosse simples e bastasse um manual de direito constitucional ou os conceitos de Martins Afonso da disciplina de "Organização Política e Administrativa da Nação".
É por isso que caímos na partidocracia, la cancrena dello Stato. Não por causa dos partidos, mas pelo vício leninista do centralismo democrático que os infecta. A culpa da falta de alternativas está no grupo de kingmakers do PS que, num restaurante da Curia, deu procuração a José Sócrates Pinto de Sousa. Apenas deu alento a Marcelo Rebelo de Sousa para dizer que, em vez de um Conselho Nacional, deveria haver no PSD um conselho de guardiões gerontocrático. Aquilo a que alguns chamam padrinhos e barões. Acontece que eles já não são os melhores, apenas são fidalgotes de segunda em coronelismo, ao serviço dos ausentes-presentes, especialistas em legados testamentários. Até as pobres universidades gaguejantes já caíram nessa brincadeira de conspiração de avós e netos, com muitos ursos à deriva, depois do degelo.


Apenas recordo algumas coisas politológicas que, há décadas, transmito. O Estado tem de ser perspectivado como um sistema aberto, como uma instituição de instituições, isto é, como um sistema que troca matéria com o exterior e que integra vários subsistemas sociais, com entradas reivindicativas (input) e saídas prestativas (output), e onde a política é mera actividade de harmonização de contrários, obtida pelo consentimento e pela persuasão.


Governar torna-se assim num processo de ajustamento entre grupos, num processo de negociação e de troca, num modo dinâmico de gerir crises, através da articulação de interesses. Porque o Estado é o lugar onde a sociedade se mediatiza, se pensa, tornando-se na instância onde devem regular-se as crises e tensões da sociedade (Rials).


Neste sentido, o Estado aparece como simples parcela de uma mais ampla sociedade política, admitindo-se um político supra-estadual, infra-estadual e a latere do próprio Estado, pelo que será possível conceber tanto a poliarquia de uma repartição originária do poder político por vários corpos sociais, como também a própria possibilidade de uma ordem universal, de uma civitas maxima, de uma sociedade do género humano.

Há, portanto, muito à maneira foucaultiana, uma rede de micropoderes, de poderes centrífugos, locais, familiares e regionais, com uma variedade de conflitos, dotados de articulações horizontais, mas onde também surge uma articulação vertical, uma integração institucional dos poderes múltiplos tendente para um centro político, para um poder centrípeto.

Entre esses vários micropoderes, importa salientar os chamados poderes difusos que actuam pela persuasão e pela sedução. É o caso do poder dos meios de comunicação social, dos "mass media", dos suportes da difusão da comunicação, como é a imprensa, o rádio e a televisão, a quem têm chamado o quarto poder.


Mas actividade de todos estes grupos não se processa no vazio, mas antes dentro de um quadro estrutural e de acordo com certas regras do jogo. Há, com efeito, uma estrutura de rede (network structure), uma relação de relações, uma rede de micropoderes, um macrocosmos de macrocosmos sociais.


Há um poder político, um campo concentrado, uma governação que trata de coordenar o processo de ajustamento entre os grupos, procurando um ponto de equilíbrio entre as tensões.


Neste sentido, o Estado é perspectivado, não como uma coisa, mas como um processo relacional, entre a sociedade civil, ou comunidade, e o aparelho de poder, como o mero quadro estrutural de um jogo entre forças centrífugas e centrípetas, toda uma miríade de poderes periféricos, não necessariamente hierarquizáveis como corpos intermediários, que se justaporiam, de forma complexa, pelo que a soberania, na prática, seria divisível e, sobre o mesmo espaço e as mesmas pessoas, não teria que haver o centralismo e o concentracionarismo de uma única governação.


O político é uma invenção marcada por uma estratégia que globaliza várias micro-estratégias, onde há uma especial forma de poder, o poder político, a síntese emergente, integrante de vários micropoderes, onde uma multiplicidade de actores actua numa determinada unidade, em quadros estruturais, em circuitos institucionalizados.