a Sobre o tempo que passa: Que venha o indisciplinador colectivo que nos traga a urgente regeneração!

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

22.9.09

Que venha o indisciplinador colectivo que nos traga a urgente regeneração!


1
O Watergate dos pastéis já deu uns passinhos na Calçada da Ajuda. Mas ainda não se assentou nos bancos de pedra da Praça Afonso de Albuquerque. Remeto para os dois artigos que publiquei no Diário de Notícias. O de hoje, e o que saiu logo que rebentou o petardo. Prefiro ir ao fundo da questão. Para a vagalhota de vulgatas de "intelligence" mal digerida com que pretendem explicar de forma pretensamente científica os chamados mistérios do poder e que nos enredam no mais paranóico dos enredos.

2
Estes ditos omniscientes das sebentas da teoria da conspiração, afinal, apenas sucedem à era dos juridicismos que marcaram a mentirosa razão de Estado da última fase do regime derrubado em 25 de Abril de 1974, já dominada pela cultura do Estado de Segurança Nacional, onde se traduzia em calão a NATO, conforme os manuais de planejamento estratégico de Golbery do Couto e Silva, Augusto Pinochet e Kaúlza de Arriaga.

3
Os fantasmas securitários ameaçam continuar a despolitizar o Estado. Mesmo quando invocam protecções místicas de sacristia ou de loja, não têm técnica nem teoria que lhes dê a categoria de monopolistas da alta política e muito menos podem chegar ao entendimento da nebulosa do chamado interesse nacional.

4
Os mais recentes episódios de histeria aconselham prudência a estadistas e líderes políticos e académicos sobre o uso que fazem de tais pretensos ocupantes dos interstícios do poder. Porque alguns deles não passam de míseros e mesquinhos carreiristas e capangas que a inquisição e a bufaria nos deixaram. Podem servir para alimentar sensacionalismos jornalísticos ou paraganonas, com fugas aos segredos de justiça e são o mais sórdido que deixámos crescer em democracia e pluralismo. Logo, há que separar o trigo do joio, antes que apodreçamos todos.

5
Juro que continuo romântico e radical, mas que detesto a revolução e a reacção. E reconheço perfeitamente os irmãos-inimigos que assumiram o situacionismo e nos vão instrumentalizando. Logo, não deixarei de denunciar as duas faces da mesma moeda má que nos vai desvalorizando a todos.

6
Não se iludam: nem a Dra. Manela é um Salazar de saias, nem Sócrates, um qualquer Hugo Chávez. Eles não passam de meros espelhos da nação que somos. De um povão a quem obrigaram a torcer em cobardia, porque lhe adormeceram a honra da coragem, dizendo que, mesmo sem espinha, vale mais um pássaro na mão do que dois a voar.

7
O mal já vem de longe, dessa bolorenta hipocrisia com que a Inquisição nos eliminou a fibra de Quinhentos, quando ainda vivíamos como pensávamos. Das moscas do Intendente que nos deram as Viradeiras, a última das quais durou quase cinquenta anos, em pleno século XX.

8
Mais recentemente, tudo se agravou quando arranjámos colectivismos de seitas que nos deram a ilusão dos PRECs. Quando muitos confundiram os amanhãs que cantam com a varinha de condão do viracasaquismo saneador, da luta de invejas. Ou com o socialismo de consumo dos hipermercados e do betão, de vez em quando embrulhados com o folclore das campanhas eleitorais.

9
Não me deixo enrolar pelos sermões de Marcelo e de Vitorino, ou pelas frases pretensamente assassinas de Mário Soares. Quero ser um bocadinho mais exigente. Não quero ser governado por aposentados e não vejo, nos políticos profissionais alternativos, aquela altura de fins políticos que nos possam conduzir à regeneração.

10
Gostaria que as próximas eleições fossem o necessário golpe de Estado sem efusão de sangue e que a próxima encruzilhada gerasse o urgente indisciplinador colectivo que pusesse fim a esta decadência neocabralista e neofontista, onde políticos honestísismos se deixaram rodear de gente com o perfil exactamente contrário. O Estado de Direito só resiste se as respectivas raízes se revivificarem na confiança pública e, consequentemente, na simples fé do homem comum, nos homens e mulheres de sangue, suor e sonho.