a Sobre o tempo que passa: Meditações de Belém ao fim da tarde, diante dos barulhos dos tractores que preparam o novo Museu dos Coches e mercedes sobrados das campanhas

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

30.3.09

Meditações de Belém ao fim da tarde, diante dos barulhos dos tractores que preparam o novo Museu dos Coches e mercedes sobrados das campanhas



Passava, ontem, diante de uma dessas esquadras da nossa segurança pública, quando cinco garbosos agentes saíam em serviço, poluindo toda a rua fronteira com o bafo de um vinhedo que prova a nossa decadência. No passeio em frente, seguia, cambaleante, um desses hierarcas do situacionismo, com escritório clandestino num edifício público, onde recebe clientes e, no intervalo, assessora oficialmente qualquer chefe de secretaria do socratismo e na esperança do regresso ao Bloco Central, enquanto vai usando o mesmo método pidesco que o elevou a intelectual de serviço da União Nacional, com redobrado zelo de patife. Li, noutro dia, uma peça judicial onde tentava inculpar alguém porque esse alguém tendo um filho de quem era acusado, não podia com ela cruzar-se oficialmente, nos nove meses que antecederam o parto.

Procurei o ar fresco de Belém, sentei-me numa esplanada a coberto do vento e levei comigo um velho volume de Cartas de Alexandre Herculano. Reli-as no preciso sítio onde desembarcou D. Miguel para jurar a Carta na Ajuda. E lá sinto que voltam os mesmo caceteiros de sempre, acirrados pela fradalhada vinda do palácio de férias do patriarca, dito antro da reacção. Reparo como todos eles dizem que "somos, a um tempo, atheus, deistas, hereges, scismaticos, excomungados e impios", ao serviço de um "espectro, phantasma, papão de creanças". Ainda ontem, num café da esquina, prometiam partir a caveira dos rebeldes malhados que por aí andam ostentando as fitas azuis e brancas, ou verde e amarelas...

Continuam a acusar-nos de não termos definições, mas esquecem que "a cousa definida existe antes da definição". É o caso do estado a que chegámos, onde o Pedro e o Paulo, agora do PSD, pouco diferem do Sancho e do Martinho, que hoje são ministros e deputados do PS. E quando o o Martinho mandou ao Pedro um papelucho, para que este o propusesse ao Sancho, que o remeteu para decisão do Paulo, todos foram antes ao padre Geral, o tal que não é ainda cadáver, porque um quarto de hora antes de morrer ainda continua caceteiro e fradesco. Na sequência, logo o ilustríssimo preparou o despacho definitivo da vindicta, benzido e adorado, com procissão do Pedro, do Paulo, do Sancho e do Martinho. Porque o Pedro quer ser ministro e o Martinho continuar director, pondo o Paulo como pró-director, com as funções que hoje tem o Pedro, para que o mesmo padre Geral nos continue a governar como mortos vivos dos congregados do antro.

Direi, como Herculano, que "não pertenço a nenhuma dessas caudas rudimentares do ministerios em disponibilidade e dos ministerios em serviço activo que tem a modestia de se chamarem partidos; sou, em summa, um desses indifferentistas ou maus cidadãos que constituem espantosa maioria no país".

Repetirei, como o mestre de Vale de Lobos: "É facil cá em baixo invocar os princípios, a logica, a lealdade às instituições liberaes, assegurando-as para o futuro. Quem está nas cumiadas é que sabe de que lado é que sopra o vento, e que precisa de imitar a canna, que verga e se dobra para não ser arrancada ou quebrada. Se o furacão atirasse das alturas para as varzeas da vulgaridade os homens eminentes que por lá andam, quem perdia não eram elles, era a patria".

Porque, como o rebelde clássico nos ensinou: "Os ministerios oppostos, quero dizer, os partidos, divergem profundamente em principios. Pedro e Paulo entendem que os ministros devem ser elles; Sancho e Martinho que são elles quem nasceu para isso. As duas theorias exluem-se. São dous systhemas de direito publico inconciliaveis. Ha um ponto, porém, em que todos concordam: é serem uns e outros o quasi cadaver diante da vontade omnipotente do padre Geral. As doutrinas luminosas e indubitaveis tem isso: são pontos de contacto às vezes entre as divergencias externas".

O Pedro é ministro, o Sancho alto funcionário do ministro, lá posto pelo Martinho que quer substituir o Pedro. E todos são da mesma seita, entre guardas de bafo pleno de vinhedo e fradescos carrascos  conservados nos vapores da persiganga, todos obedientes e reverentes ao Padre geral. A revolução chegou e em Belém desembarcou. Acabei de receber os impactos negativos do bafo fradesco da ressaca vinheda do mosca do situacionismo. Ah!... o novo padre Geral chama-se hoje livro de cheques e cartão de crédito, com conta alimentada num "off shore", não sei se com fundos excedentes das campanhas da oferta de electrodomésticos, de caminhos públicos alcatroados para as quintarolas do formal oposicionista, já comprado para a mesa do orçamento, ou de meros chocolatinhos para os árbitros da futebolítica...