a Sobre o tempo que passa: Contra o liberalismo a retalho, dos devoristas, e o intervencionismo do estadão, com que muitos confundem a esquerda

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

27.3.09

Contra o liberalismo a retalho, dos devoristas, e o intervencionismo do estadão, com que muitos confundem a esquerda


A turbulência sistémica destes começos de Primavera, que teve um excelente revelador no caso da não-escolha do Provedor, atingiu, ontem, novos contornos, com Marinho Pinto, mais uma vez, a tentar demontrar pateticamente como o princípio de Peter marca o ritmo dos principais protagonistas da nossa teatrocracia de ópera bufa, onde autores de guiões para o "agenda setting" e manobradores de bastidores até trasnformam idiotas úteis que se fingem oposicionistas em capachos dos situacionismos. Só que Avelino Ferreira Torres, ao sair absolvido da embrulhada, deu alento a Isaltino Morais, também autarca, mas, além disso, ex-magistrado e ex-ministro. Por outras palavras, ninguém consegue tratar proventos recebidos da Dona Branca e dos donativos para campanhas eleitorais com as técnicas electrodomésticas de pesquisa da licitude que a Constituição e os Códigos impõem a magistrados, a polícias e a advogados. Avelino, à saída do tribunal em ombros, logo começou a campanha eleitoral, com cartazes afixados e tudo...

Basta estarmos atentos à comissão parlamentar de inquérito ao sistema bancário para confirmarmos como a Assembleia da República está a colocar a questão no seu devido lugar, mostrando como interessa retratar ao vivo certas condutas, livrando-as das morosidades processuais da chamada administração da justiça em nome do povo. Só uma análise política que torne patente a chamada moralidade social é que pode exprimir um adequado juízo de conduta, livrando-nos dos chamados julgamentos pela opinião pública, canalizados pelo sensacionalismo jornalístico. Todas as grandes democracias experimentadas pelas desilusões já o assumiram. Espero que a nossa entre nesse ritmo e não volte a passar pela vergonha de processos como o da Casa Pia.

Verifico que Jorge Miranda como Provedor começa a entrar no tempo verbal do pretérito imperfeito, para bem do institucional representante de uma das principais escolas públicas de direito, que parecia estar a ser jogado pelas manobras negociais do PS, que pretendia lavar as mãos como Pilatos, nessa impotência sistémica que tem o rosto do multicárpico ministro Silva Pereira. Noto como Manuela Ferreira Leite, ao emitir, todos os dias, uma mensagem forte, já deixou Luís Filipe Menezes na categoria de actor secundário, limitando-o aos confrontos com Joana Amaral Dias. E rio-me com as notícias da venda do Magalhães no mercado negro, depois de o mesmo ter sido recebido a fundo perdido, em nome da justiça distributiva, não compensada pela adequada justiça social. Isto é, a caixa central do erário, mais uma vez, calculou mal e pensou que o "suum cuique tribuere", o dar a cada um conforme as suas necessidades, cabia numa abstracção ideológica. Pior do que isso: foi irmã-inimiga dos neoliberalões, os tais que consideram que a justiça social, o exigir de cada um conforme as suas possibilidades, de acordo com o clássico "honeste vivere", se reduz a simples miragem.

Por mim, que, como os clássicos liberais, os do liberalismo ético, à Adam Smith, sou justicialista, não considero que a mera justiça comutativa dos contratos, possa ocupar o espaço da justiça distributiva e da justiça social, rejeitando frontalmente a perspectiva utilitarista do máximo de prazer com o mínimo de dor, porque Bentham permite que seja o aparelho de Estado a intervir na medida do mínimo ético. Logo, também não entro do totalismo contratualista dos neo-hedonistas à Onfray e a Nuno Nabais, com que muitos confundem a nova esquerda, tirada a papel químico das propostas pagãs de certa nova direita galicista. Mantenho-me institucionalista e adepto do humanismo integral, continuando a seguir as lições de Hauriou e de Maritain, mas segundo o ritmo do radicalismo de Alain.

Por isso, sei das histórias do baldio grande da Serra de Serpa e das clássicas distribuições de terra a seareiros, os tais que logo as venderam a copos, numa qualquer taberna, aos bacalhoeiros de Lisboa, feitos novos latifundiários absentistas para caçadas de fim de semana. O exemplo dos Magalhães trocados por telemóveis, que borram a pintura desta anedota de um socialismo pretensamente tecnológico, apenas confirma como os doutrinarismos das abstracções e das utopias não andam com os pés no chão e acabam por desfocar a necessidade de continuarmos a olhar as estrelas e a seguirmos o sonho.

A geração dos nostálgicos da revolução perdida que nos desgoverna, ao confundir o empirismo organizador dos salazarentos com o ritmo do aumento quantitativo do estadão, pode candidatar Ana Gomes a presidente da câmara de Sintra, para, nos intervalos, a colocar como a adjunta maoísta do ex-cunhalista, cabeça de lista na campanha eleitoral para o Parlamento Europeu, mas ainda não reparou como o meu amigo, carequinha do Benfica, tem mais povo do que os conselhos que ela pode receber do seu colega de blogue Luís Nazaré, também benfiquista, mas não carequinha, perdido que está nas volutas da grande gestão do patrão-Estado. Seara, além disso, conhece quotidianamente os problemas das pessoas concretas e, mesmo com muitas más companhias, as do flagrante de litro, tem confiança directa de parcelas significativas do eleitorado, que já esqueceu que ele aceitou ser vice-presidente de Luís Filipe Menezes.

De qualquer maneira, é curioso verificarmos como o situacionismo tenta ultrapassar a encruzilhada com uma qualquer receita de sopa da pedra, preparadora de uma cosedura à portuguesa, que misture morcela com tripas e caldo verde, ou estalinistas com fascistas folclóricos, e aristocretinos com beatos do cardeal saraiva, onde todos não seremos demais para fingir que se dá ciência à bruxaria, através da reedição da união nacional do centro dito católico. Felizmente, o presidente apenas continua triste e preocupado, muito triste e preocupado, sobretudo com os que continuam na utopia do presidencialismo, essa tolice que apenas agrava a urgente restauração da república como Estado-Comunidade, contra os intervencionismos do estadão, com que muitos continuam a confundir a esquerda. Por mim, vou reler a carta aos eleitores de Sintra, mas do Alexandre Herculano, antes de também eu marchar para Vale de Lobos, lá para os lados de Valbom dos Gaviões...