a Sobre o tempo que passa: fevereiro 2009

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

27.2.09

Conversa de Sócrates para os seus benjamins botões


Qual cimeira, qual carapuça, aquilo não dá horas e horas de tempo de antena, como vai ser no meu congresso, ainda por cima, quando o PCP e os bloquistas marcaram eventos para concorrerem comigo e me roubarem palanques, como, aliás, eu fiz quando ocupei o horário no dia do congresso do CDS, ao fazer uma conferência de imprensa anunciando a moção de estratégia que me obriga a ter que receber mais de noventa por cento dos votos dos militantes do partido? Eles não sabem que as parangonas vão, as parangonas voltam e ai de mim se temesse o novo canal da TVI.

Claro que a cimeira da União Europeia não tem interresse nenhum. Ela é como a pescada,  a tal que antes de o ser já o era, pois os nossos colegas europeus, membros do G20, já prepararam tudo e, desta vez,  não recebi prévios telefonemas do Sarkó, da Bruni, ou do Durão, só o Zapatero é que comunicou comigo em basco, por causa do convite que dizem que fiz ao venezuelano, perguntando quando é que este pedaço da jangada de pedra vai iniciar a sua viagem à deriva em circum-navegação, como o Fernão que morreu assassinado à vista da costa das ... Filipinas. Claro que esta Europa sempre foi aquilo que eu temi, uma chatice, com reuniões de muito inglês técnico, onde é bem melhor sermos representados pelo Amado, pelo Cravinho e pelo dos Santos, o Teixeira, não o Eduardo dos Santos nem o da Teixeira Duarte,  o tal que foi da CNVM e substituiu o Luís Campos e Cunha.

Vou mas é para junto da minha gente. Essa compreende-me, sei comunicar-lhe os sonhos, eles batem palmas, olham-me olhos nos olhos e mandam-me para a frente. Não, eu não sou como essa senhora que anda à procura da verdade, mas ainda não leu o Bernstein nem a Fenomenologia do Ser de Sartre, tal como aquele que disse que a "Utopia" era do Thomas Mann, o primo do Chopin que compôs alguns dos fados da Amália. Desta vou mesmo virar para os Canhotos, para evitar a sangria que me fizeram aqueles rapazes do Bloco de Esquerda, quando deixaram de ser o partido dos directores-gerais, como o António, o Guterres, ainda conseguiu ter a ilusão de fazer...

Eis o discurso imaginado com que Sócrates fala para os respectivos benjamins botões, porque já disse quase tudo ao "Meia Hora": “Vai ser um exercício de palanque de José Sócrates. Uma
apoteose”. Porque  “todos os partidos transformam os congressos em tempo de antena”, mas no caso do PS – e numa altura em que o partido mais parece ser de ‘one man show’ – as duas moções que estarão em debate além da “Força da Mudança” de Sócrate “passam completamente para segundo plano”. 

Já ontem tinha observado ao "Jornal de Negócios" que "o Estado é pequeno demais para resolver os problemas da crise. Mas vamos vendo um primeiro-ministro inundar o País com dinheiro que não tem, e a oposição a discutir a casca da árvore sem ver a floresta". Assim, "os confrontos parlamentares parecem um debate entre comentadores e não entre forças políticas". São "debates esquizofrénicos, para a demagogia e de pormenor". Mas sem que a imagem do Parlamento seja "pior do que a imagem do Governo ou da Justiça", dado que vivemos um problema de "infuncionalidade das instituições".

26.2.09

O poder corrompe, o poder enlouquece, o poder à solta corrompe absolutamente e enlouquece absolutamente


O estado febril da sociedade tem-se agravado, apesar do campeonato das parangonas e no dia em que vai abrir uma televisão sensacionalista nos domínios da informação. Com a polícia de segurança armada em polícia de costumes, eis o belo estado de suprema hipocrisia a que chegámos. Não tanto pelo erro dos guardas quanto, sobretudo, pelo cala-te boca das ministerais figuras das pastas do interior e da cultura, talvez para não ficarem associadas a mais uma das anedotas do clássico policiesco da velha senhora que, ao contrário desta, gerava decretos com força de lei que admitiam o tique da devassa de Pina Manique. Apenas resta reconhecer a esquizofrenia deste Estado megalómano, que é grande demais para os pequenos problemas do quotidiano, onde um cabo de esquadra actua como se fosse, na rua da cidade, o "oikos despote" lá de seu lar ainda não sujeito à APAV. Um Estado com essa mania das grandezas que, contudo, é pequeno demais para a crise que nos envolve, sentindo-se plenamente impotente para os concretos desafios do nosso tempo.

A desinstitucionalização em curso faz com que regressem os tradicionais compadres e comadres do país da classe político-jornalística, bancocurocrática, capitaleira e castífera, com muitos anjos, antes da queda, procurando tacho entre os capatazes e os feitores dos ricos. É natural que, a muitos, apetecesse o regresso ao regime das velhas medidas de segurança daquele Estado de Legalidade do bate primeiro, protesta depois. Dessa máquina trituradora de opositores, adversários e dissidentes, em nome dos superiores interesses da Razão de Estado, concentrando os monopólios da avaliação, da classificação de serviço, da definição técnica, da inquirição e do procedimento disciplinar. Porque os interesses profundos da pátria têm mais que fazer do que preocuparem-se com a mercearia dos direitos, liberdades e garantias. Aliás, os polícias, voltados sobre si mesmos, tal como muitos outros presidentes e directores, incluindo os que ainda restam como gerais ou regionais, voltados sobre o próprio umbigo aparelhístico, dirão, em desabafo íntimo, que esta não é a sua polícia, porque ainda não está adaptada ao grande programa informática do número único e do chip único.

As cinzas regressam e enegrecem as campanhas, prosseguindo esta insensível derrocada do bom senso elevada ao ridículo, quando estão, sobretudo, a desabrochar as sementes daquela ditadura da incompetência que marca o fim da racionalidade normativa de uma legitimidade marcada pelas instituições da legalidade e da burocracia racionais, onde a competência deveria ser superior ao patrimonialismo da compra do poder e à lealdade neofeudal de outras legitimidades, desde a do sultão à do profeta, num tempo em que os heróis perderam o carisma e os reis já não são taumaturgos. É natural que, assim, a confiança pública saia manchada por estas sucessivas denúncias de compressão e condicionamento das liberdades de expressão de pensamento, dominadas pelo monopólio da palavra dos demiurgos.

Eis as consequências da música celestial dos Praces e do ritmo de parecerística, "outsourcing", subsidiocracia e desinstitucionalização, onde a única literatura de justificação do poder tem a ver com o cantarolar de uma abstracção importada, mas estranha à nossa índole, esses vermes de tecnocracia que inverteram a tradional autonomia dos grandes corpos do Estado. 

Nem as próprias universidades escaparam a este processo, usando a decadência do multitudinário neofeudalizado pelos instalados, a que chamavam gestão democrática das escolas e autonomia universitária. Os velhos donos do poder corporativo já se adaptaram à nova farpela e acrescentaram, ao anterior ritmo do negócio universitário, que chegou quase a ser dominado pelos colaboradores de Veiga Simão no Maputo, transformados em reitores de província, uma eficaz entrada no recrutamento dos homens de sucesso, a que chamam sociedade civil, pedindo aos restos da vida empresarial e bancária que lancem os novos esquemas do neocorporativismo, não faltando os sempiternos desfazedores do boneco, os tais que aplicam a teoria da conspiração dos avós e netos para desfazerem todos os esquemas institucionais que mantaram criaturas institucionais que já não obedeciam aos pretensos criadores.

O poder corrompe, o poder enlouquece, o poder à solta corrompe absolutamente e enlouquece absolutamente, especialmente num país que já não sabe rir nem sorrir, perdido numa federação de endogamias e de pequenos quintais autárquicos, onde a personalização do poder dos micro-autoritarismos sub-estatais decreta quem pode ser o dissidente ou o opositor, criando mecanismos regulamentares que lhe comprimam a cidadania ou o sujeitem à processualização típica da velha persiganga. É pena que a quantidade de energia que gastamos nestas falsas mudanças fiquem para sempre naquela zona do desperdício a que os analistas de sistemas chamam lixo.

25.2.09

Limões insinuantes e Europa amaralizada pela hierarquia das potências


Quarta-feira de cinzas, governo de Sócrates, pintura de Courbet em Braga, com conteúdo pornográfico, autocolantes que recobriam o "Magalhães" quase proibidos em Torres Vedras, Director-Geral de Educação do Norte, a do Charrua, dando muitas no cravo e outras tantas na ferradura... apenas aguardo artigo radical da Fernanda Câncio pondo na ordem esta desordem, de polícias e magistrados movidos por denunciações, para que o Rui Pereira, a Maria de Lurdes Rodrigues e o Alberto Costa continuem a assobiar o choque tecnológico das novíssimas fronteiras. Porque assim, o Freeport deixa as parangonas e ninguém parece disposto a pensar e discutir a destruição da Europa que alguns membros europeus do G20 levaram a cabo, preparando previamente as decisões que irão ser propostas às cimeiras da União Europeia e do mesmo G20. Porreiro, pá!

É por isso que apoio a atitude que o ministro dos negócios estrangeiros de Portugal, Luís Amado, ontem esboçou timidamente. Ai da Europa, se persistir esta lógica de Congresso de Viena, com as potências a comandarem um pelotão de médios e pequenos Estados, porque o realismo impõe que a crise internacional seja apenas superada pelos grande, os tais vinte que abocanharam mais de 90% do produto planetário! Somos todos iguais, as duas centenas de Estados membros da ONU, mas há alguns mais iguais do que outros, os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. Somos todos iguais nessa "animal farm" chamada União Europeia, mas há meia dúzia que vão às reuniões preparatórias do G20. Os outros,  que, sem ser por acaso, são a maioria, apenas são figuras secundárias nesta quinta dos animais com poder, onde os Estados se medem pela força da economia.

Os médios e pequenos Estados apenas servem para o teatro das cimeiras e para os espectáculos do Tratado do Mar da Palha, com muitos porreiros e muitos pás, de feitores e mestres de cerimónias. E, depois, os anti-europeístas somos nós, os que invocam a ideia de Europa dos pais-fundadores, os que continuam a estar contra este neofeudalismo de uma espécie de anarquia ordenada pelas potências directoras.

Vale-nos que Sócrates vai convidar Diogo, o Freitas, amaralíssimo, para encabeçar a lista dos socialistas e a seccção portuguesa do Partido Socialista Europeu. Consta que o mesmo corpo, de costas espatifadas por um problema de espinha, já foi presidente da União Europeia da Democracia-Cristã e, ainda há anos, invocava o privilégio de ser o único português que era sócio individual do Partido Popular Europeu, o tal rival do PSE, agora integrado pelo PSD e pelo CDS de Portas. Tenho a honra de nunca militar em qualquer partido que ele dirigiu. Num deles, entrei quando ele saiu e tratei logo de sair quando ele voltou para resolver um problema de dívidas de uma campanha presidencial.

Para portugueses atentos, este candidato a Talleyrand, é, aliás, igual a outros antecessores dele no Largo do Caldas, especialistas na filosofia da traição, como um deles foi qualificado categorialmente por Marcello Caetano. O tal que continua a ser considerado paradigma, por causa da constante conspiração de avós e netos, de que se vangloria. A hipótese que agora se coloca não desprestigia o PS, que já elevou o primeiro a ministro dos estrangeiros. Apenas liquida a direita a que chegámos, comprovando a ligeireza com que o PSE e o PPE tratam as secções nacionais portuguesas de tais multinacionais partidárias. Não passamos de terra de porreiros e pás, onde, nas elites, anundam candidatos a capatazes e feitores de um qualquer dono de poder alienígena.

Por isso, continuo a sorrir com a demagogia de soberanismo keynesiano que inunda o nosso discurso oficial face à crise. Até vi um ministro denunciar os alemães por causa da Qimonda, que cá o Estado do Zé estava disposto a abrir os cordões à bolsa do orçamento, como se o Estado do Marquês de Pombal, de Fontes Pereira de Melo, de Salazar ou de Cavaco Silva ainda existisse. Não passamos de potência secundária, com uma classe política que não sabe quem foi Febo Moniz e chama doidinhos a D. António Prior do Crato e ao Manuelinho. Há muitos candidatos a "ministros do reino por vontade estranha". Eu continuo a ler Bandarra.

Por isso, há sempre uma directora-regional do norte, um denunciante da pornografia do Carnaval, ou uma polícia que apreende Courbet, repetindo as anedotas que contávamos sobre o autoritarismo salazarento. Como há outros tiques do micro-autoritarismo sub-estatal, enquanto os tais ministros lavam as mãos como Pilatos. Aliás, os crimes de corrupção começam a poder entrar na contabilidade dos corruptores, porque, conforme já foi provado na barra dos tribunais, se alguém tentar comprar alguém com duzentos mil pode ser apenas condenado a multa de uns meros cinco mil...

PS: Acabei de enviar uma denúncia à polícia sobre a exposição desta imagem da capa de um livrinho que continha um qualquer canto nono. Espero que o Ministério da Agricultura actue de imediato contra a insinuação de um tal Luís Vaz!

20.2.09

Até quarta-feira de cinzas, suspenderei a minha emissão quase diária de postais neste blogue, salvo se circunstâncias extraordinárias me obrigarem a intervenção em defesa da honra cívica, ou pessoal.

19.2.09

Contra o Leviathan soberanista, pela necessidade de um Estado de Direito Universal


Uma das mais curiosas teorias da conspiração tem a ver com a literatura de certo socialismo, verbalmente anticapitalista, quando reduz o respectivo sonho ao aumento quantitativo do intervencionismo estadualista, dos Estados a que chegámos, esses que são pequenos demais para os presentes grandes problemas do mundo, mas que continuam a ser grandes demais para asfixiarem a imaginação e a criatividade das pessoas concretas e das autonomias grupais que estas podem gerar pelo princípio da simpatia, teorizado por mestre Adam Smith. Nem sequer repara que o Estado e o Mercado são filhos da mesma encruzilhada teórica, essa alavanca da chamada modernidade que foi expressa pelo "Leviathan" de Thomas Hobbes, o filósofo que preparou a conquista do poder por uma burguesia que precisava de tal ideologia para romper com a anterior sacralização do poder, pondo numa mão o báculo e na outra, a espada, mas confundindo os dois braços no cacete do proibicionismo.

É evidente que, aqui e agora, mesmo em plena crise, eu continuo adepto do capitalismo e da ética demoliberal que lhe está na base, não encontrando nas palavras do cardeal D. Saraiva Martins a razão que leva o presente modelo de socialismo menos, no poder em Portugal, a assumir o essencial da herança antiliberal de Salazar, dessa economia privada de cunhas neofeudais, à espera do proteccionismo, que não quer uma real economia de mercado. Por outras palavras, continuo a subscrever Hayek e a querer denunciar a presente cedência ao caminho para a servidão, nomeadamente pelo regresso a formas de legitimidade anti-racionais-normativas, nomeadamente ao patrimonialismo dos donos do poder.

Só com melhor política e mais autonomia da sociedade e dos indivíduos é que poderemos superar a presente crise. Porque não foram os socialistas que venceram os desafios da velha questão social, que lançaram os fundamentos do "New Deal", ou do "Welfare State". Foram os neoliberais, os neo-democristãos e os neo-socialistas desses tempos dos pós-guerras que passaram, os tais que lançaram os modelos do capitalismo democrático que nos deu mais riqueza e mais justiça.

Só que não é o velho Estado soberanista de Hobbes, ou a macromonetarice de Keynes e Cavaco que poderão apontar rumos para a presente falência de justiça e de liberdade. A presente crise, se é global, exige a instauração de um político que também seja global. Por outras palavras, só a emergência de um Estado de Direito universal, daquilo que Kant chamava direito cosmopolítico e república universal, poderá evitar o regresso ao proteccionismo dos Estados lobos dos Estados, desses Estados-bolas-de-bilhar, em perpétuo movimento. Só a emergência de formas de "civitas maxima", "civitas humana" ou de "sociedade das nações" nos poderão fazer renascer a esperança.

Confesso que continuo liberal e adepto do capitalismo. Em nome da experiência e da esperança. O que tem falhado é uma Europa activa, supranacional e supra-estatal, e não esta colectânea de falhadas cimeiras que não conseguem acompanhar o desafio lançado pelo neo-isolacionismo em que podem cair as medidas proteccionistas de Obama. O que não existe é uma efectiva Organização Mundial de Comércio Justo e reais regras universais, com segmentos de intervencionismo global. Restaurar o Estado salazarista em nome do socialismo é uma tolice de pequeno Estado que quer ser Estado Secundário, numa balança da Europa comandada por restauradas potências de Talleyrand, num neofeudalismo que beneficiará os grandes, mas condenará os pequenos e médios Estados ao falhanço do inviável, ou à mão estendida.

Um verdadeiro liberal tem que voltar a defender Kant, Ropke (na imagem) ou Rawls e assumir o projecto dos pais-fundadores do projecto europeu, subscrevendo o sonho de Wilson de um capitalismo universal e de um demoliberalismo com regras e segmentos de justiça, através de pequenos passos para uma efectiva República Universal que não seja utopia de amanhãs que cantam. É este o regresso ao Estado que advogamos, sem a megalomania socialista do Portugal dos pequenitos com a mania das grandezas, esse que vai acabar por ser governado pela pilotagem automática dos agentes do FMI, do Banco Mundial ou do "spread"... Por outras palavras, se a geoeconomia não puser a especulação da geofinança na ordem, não há trabalho e procura da riqueza para um mundo melhor que resistam em igualdade de oportunidades e meritocracia!

Diz-me que inimigo escolhes e eu dir-te-ei quem és... ou as teorias da conspiração que são literatura de justificação


Confesso que sou céptico demais para me bastarem as explicações universais de alguma literatura de justificação, a que muitos dão o nome de teorias da conspiração. Vivo num aqui e agora de quatrocentos anos de inquisição, com persigangas, fogueiras, bufos e dissimulações, restauradas por sucessivas viradeiras, a última das quais se vestiu de salazarismo, soma de inquisidores de gabinete e sacristia com o policiesco torturador de Pina Manique, onde dezenas de milhares de moscas viviam da denúncia anónima, em nome da luta de invejas, a mesma que o PREC restaurou sob a forma de saneamentos, pedindo ao aparelho de poder para excluir da cidadania o vizinho, o colega ou o parente. Hoje, vestidos com a verniz da democracia, mudámos o aspecto do bufo e instrumentalizámos o aparelho de poder, sobretudo a nível da espionite e da processualização.

É evidente que acredito em conspirações e que posso identificar algumas do Portugal Contemporâneo. A de 24 de Agosto de 1820, promovida pelo Sinédrio. A da Maria da Fonte e da Patuleia que só frutificaram com a Regeneração de 1851. A de 1910, com base nos Jovens Turcos e na Carbonária. A do dezembrismo sidonista de 1917, com os subsídios do latifundiário alentejano do Partido Unionista, avô de um antigo deputado europeu da actualidade. A do 28 de Maio de 1926 que meteu um conspirador de 1910, acabando usurpada pela ditadura das finanças e das forças vivas. A do 25 de Abril de 1974 que foi mobilizada pelo movimento dos chamados capitães.

É evidente que, para cada conspiração triunfante, houve, em média, cerca de cinco conspirações falhadas por década. E que alguns desses movimentos levaram a magnicídios, transformando-nos num dos países do mundo que, no século XX, mais matou figuras cimeiras do Estado: o regicídio de 1908; o presidenticídio de 1918; a Noite Sangrenta de 1921; o assassinato do chefe da oposição, Delgado; o acidente/atentado de Camarate. Para não falarmos do envenenamento de D. João VI em 1826.

Em quase todos estes casos, sabemos quem matou, mas, no fim dos processos, nunca as polícias e os magistrados determinaram quem mandou matar. Por outras palavras, fica um vasto espaço para cada um elaborar a teoria da conspiração conveniente, sempre que as polícias e os tribunais se mostram impotentes para a descoberta da verdade. Podemos escolher o fantasma ou preconceito que melhor se adequa à nossa crença, atirando para cima de maçons, jesuítas, comunistas ou fascistas, ao estilo daquilo que se diz da morte de D. João VI em 1826, onde foi confirmado o enevenamento mais de um século depois. Os liberais dizem que foi o cozinheiro, miguelista; os reaccionários, que foi o médico, maçon e liberal. O resto é sinarquia, campanhas negras, cabala, hidras disto e daquilo, não faltando os que voltam a ler a conspiração dos sábios do Sião ou a manobra do capitalismo internacional.

Hoje, é Freeport, Casa Pia e Apito, o prefeito emérito da Congregação da Causa dos Santos, o grupo de pressão LGT e, sobretudo, o sindicato eterno do elogio mútuo. Fica a explicação conveniente para cada um: a campanha negra contra Sócrates; a cabala contra o PS; o anticomunismo primário; a doença infantil do esquerdismo; a antinação; os revisas; os fachos;  as pinoquídas dos jotas e dos jornais partidários; as denúncias da espionite pidesca com periscópio de fora. Por mim, só sei que nada sei. Mas que a hidra da corrupção leva a que o crime compense, não tenho dúvidas. Não acredito em teorias da conspiração, mas que as há, as há. O mundo da razão de Estado e da compra do poder continua a mover-se. E sorrio com estas volutas de uma crise mental. Diz-me que inimigo escolhes e eu dir-te-ei quem és...

PS: São recordações escritas de uma intervenção minha no Rádio Clube Português, ontem.

18.2.09

Um pouco de metapolítica em dia de revolta, onde a poesia volta a ser mais verdadeira do que a história



Basta um pequeno sinal de caos para que, perdendo o eixo, o mundo se desordene e que, por mim dentro, se diluam as sementes de revolta. E quando, perante um qualquer pequeno nada, temos a sensação de um qualquer vazio, todo o mundo parece desabar, e, perdidos na encruzilhada, voltamos ao próprio princípio que sempre foi o verbo, a palavra, o discurso, o texto, o razoar primordial que nos deu "logos", ética da responsabilidade e ética da convicção, da razão inteira, não apenas finalística, mas também axiológica. Essa causalidade múltipla que nos leva à procura da perfeição, em busca de quem somos, porque é por dentro das coisas que as coisas realmente são.

Tudo porque me pediram para ficcionar como será o mundo depois de eu já cá não estar, no ano de 2050 depois de Cristo. Sem qualquer cedência ao cientificismo, chame-se futurologia ou prospectiva, começo por imaginar que a própria medida do tempo pode já não ter como marco esse messias, justamente maioritário, aqui e agora.

Porque outro o pode superar em plenitude e vulgatas, com a emergência de novas aparições, ou com eventuais encontros com extraterrestres, se a escatologia e a ciência o permitirem.

Mas talvez ainda permaneçam homens de boa vontade que sejam homens livres, se o conceito individualista, nascido das luzes do Mediterrâneo, berço do estoicismo, do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, resistir, face aos totalitarismos grupais e aos respectivos fundamentalismos.

Por mim, julgo que deixará de haver esta ficção de declararmos hipocritamente a existência de uma democracia universal, apenas permanecendo algumas democracias, as que ascenderam ao universal pela diferença, assentando no “small is beautiful” da velha “polis” e dos reinos medievais, donde  veio o conceito romântico de nação, sempre em conflito com a herança absolutista da estadualidade.

Embora a esperança de uma paz perpétua, à Kant, com a sua ideia de Estado de Direito universal, ainda possa permanecer nalgumas instituições, desde a herdeira da Sociedade das Nações à união europeia, julgo que continuará a ser projecto a procura da realização do sonho dos homens de boa vontade, tentando juntar, contra a intolerância, os humanismos, cristãos e laicos, os que nos deram a revolução atlântica demoliberal, da revolução inglesa à revolução norte-americana.

Se não imagino uma utopia dos “amanhãs que cantam”, à procura de uma dessas revoluções de terror, que encontrem o totalitarismo de um qualquer aparelho de poder pretensamente iluminado, nem por isso deixo de assumir a esperança, vislumbrando as sementes de bem e de mundo melhor que a humanidade tem acolhido.

Em 2050, quando os meus netos forem pais e avós, julgo que eles estarão em convalescença, depois de terem sofrido novas investidas dos velhos cavaleiros do apocalipse, como novas fomes, novas pestes e novas guerras, e com os consequentes rastos de autoritarismos e totalitarismos, os tais sintomas das causas que costumam acompanhar essas degenerescências.

Isto é, acredito que, depois de inevitáveis quedas, os homens concretos e o homem de sempre estarão, mais uma vez, a levantar-se, com novas frases que pensam salvar a humanidade, mas ainda sem conseguirem a salvação do mundo, essa procura da perfeição que marca sempre o homem imperfeito.

Continuará por fazer a obra da “política” que, desde Péricles, sempre teve como sinónimo a “democracia”, mesmo que tivesse, ou venha a ter, um novo nome. Por isso, os meus filhos e os meus neto continuarão a ler Platão, Cristo, Buda, Confúcio, Maomé e Rousseau, bem como um desses pensadores de hoje que deconheço, mas que, de certeza, já escreveu a nova inspiração do amanhã.

Porque não são os teóricos do processo histórico que fazem o homem. Será o homem a fazer a história, mas sem saber que história irá fazer. Porque ela não é causa, mas consequência. Depende das acções dos homens e não das respectivas intenções e planeamentos. Por outras palavras, continuaremos a dizer que a poesia é mais verdadeira do que a história...


17.2.09

Quando predominam os bonzos, endireitas e canhotos, é inevitável que floresça a ditadura da incompetência


Há coisas que, de vez em quando, entram dentro de mim pela coincidência, pela experiência, pelo acaso. Coisas que já conhecia há muito e que fui calando, por recato, por segredo de justiça, por zelo profissional ou por simples recato. Há meses que conhecia em pormenor uma das mais recentes parangonas, mas por razões morais e patrióticas, comuniquei a quem não soube actuar devidamente antes da nuvem se transformar em tempestade. Um dos conhecidos políticos que faz primeiras páginas quase todos os dias, além de ser meu contemporâneo na faculdade, nasceu no mesmo dia e ano deste escrevente. E bem poderia determinar outras primeiras páginas se as regras do processo e do Estado de Direito não me aconselhassem ao silêncio.

Por outras palavras, entre a República Portuguesa e o último país onde vivi, os sinais de corrupção  são directamente proporcionais aos de Estado falhado. Bastaria ter ouvido, noutro dia, o professor Daniel Bessa anunciando a chegada de um controleiro financeiro internacional, à semelhança do do FMI que obrigou ao governo PS/ CDS, com Vítor Constâncio nas finanças. Nada de confusões: Paulo Portas ainda andava pelo PPD, Manuel Ferreira Leite ainda não se tunha inscrito no partido de que agora é líder e Sócrates andava a estudar engenharia.

De qualquer maneira, quando olho para esta Europa, feita confederação do egoísmo de grandes potências, onde só os pequenos e médios Estados é que estão condenados ao cumprimento das regras emitidas pelas cimeiras, que saudades eu tenho daqueles pais-fundadores que tinham uma ideia de Europa e daqueles comissários que se assumiam como Jacques Delors. Porque, nesta encruzilhada, primeiro, estão os complexos bancoburocráticas de cada um desses Estados e só depois vem a retórica europeísta, numa altura em que outros grandes espaços vão executando programas anticrise.

Quem se desleixou com a fuga de informação sobre as listas nominativas de espiões não deve ter reparado quanto custou ao contribuinte a formação em confidencialidade de cada uma dessas unidades directivas. São milhões de euros desmantelados pelo modelo do senhor ninguém a que chamamos burocracia e regulamentarismo, no sobe e desce do passa-culpas, sintoma de um mal maior que a de um aparelho de poder totalmente insensível à urgente cultura de defesa nacional e de sentido de Estado de Direito. É, sobretudo, um aparelho de Estado que não é marcado pela legitimidade racional, da racional-normativa à racional-axiológica, onde a ética da responsabilidade deve, todos os dias, ser corrigida pela ética da convicção.

Não se estranhe, portanto, que em vez da legitimidade racional predominem os sucedâneos de legitimidade carismática e de legitimidade tradicional, acabando por funcionar o patrimonialismo neofeudal da cunha, da partidocracia e do clientelismo, terrenos favoráveis ao desenvolvimento da chamada compra do poder, mais conhecida por corrupção. Quando predominam os bonzos, endireitas e canhotos, é inevitável que floresça a ditadura da incompetência.

16.2.09

Qualquer homem que tem poder tende a abusar dele, indo até onde encontra limites. Quem o diria? A própria virtude precisa de limites


Pronto! Chávez é democraticamente ditador e Sócrates, apesar de algumas mordidelas de mosquitos críticos e de muitas campanhas negras oposicionistas, obteve 96% para a reeleição, como líder do PS, quase atingindo o dobro do cliente sul-americano do "Magalhães" e igualando Paulo Portas. Só que o país pode não ser o partido, e setenta a oitenta mil militantes até são menos que os felgueirenses, os gondomarenses, os oeirenses e os madeirenses. Claro que os militantes do PS não são os cidadãos venezuelanos e cubanos, mas um universo que acaba de ser desertificado pelo mesmo eucalipto governamentalista que, com Cavaco, já tinha infectado o PPD, não por culpa da natureza dos dois partidos do Bloco Central, mas por causa do absolutismo das maiorias absolutas.

Por isso, reli Montesquieu: "para que não se possa abusar do poder é necessário que, pela disposição das coisas, o poder trave o poder. E isto porque "todo o homem que tem poder sente inclinação para abusar dele, indo até onde encontra limites". Com efeito, Montesquieu anteviu que o poder está sujeito a uma lógica espiral, admitindo que não basta ele controlado pelas leis, dado que estas podem ser abolidas e que a prática tem demonstrado que nos conflitos entre as leis e o poder, este costuma sair vitorioso.

Para Montesquieu, os governos podem "por natureza" ser republicanos,monárquicos ou despóticos. O governo republicano pode, por sua vez, ser democrático - quando o exerce o "povo inteiro" - ou aristocrático - quando apenas é exercido por parte do povo. O governo é monárquico quando "há um só que governa com leis fixas estabelecidas", isto é, com "leis fundamentais", mas também com "poderes intermédios, subordinados e dependentes", entre os quais destaca o da nobreza. Finalmente, o governo é despótico quando governa um só, mas "sem lei e sem normas apenas segundo a sua vontade e o seu capricho". Um despotismo que pode também ter a variante da anarquia, considerada o "despotismo de todos".

Atendendo aos princípios, ao fim visado por cada forma de governo e ao que "o faz actuar", considera que o despotismo é dominado pelo medo,a monarquia pela honra ("amor dos privilégios e distinções") e a democracia, pela virtude ("amor à pátria e à igualdade" que faz "a devoção dos cidadãos ao bem público").

Porque a virtude consiste na probidade, na preferência contínua pelo interesse público sobre o interesse próprio, pelo amor das leis e da pátria e pelo amor à igualdade e à frugalidade. Salienta que "não é necessária muita probidade para que um governo monárquico ou um governo despótico se mantenha ou sustente. Num a força das leis, no outro, o braço sempre levantado do príncipe, regulam ou contêm tudo. Mas num Estado popular é necessário um grau mais elevado que é a virtude".A virtude política que é "uma renúncia a si mesmo,que é sempre uma coisa muito dolorosa".

Não deixa, contudo, de considerar que tanto a democracia como a monarquia podem degenerar:"as monarquias corrompem-se logo que aos poucos tiram as prerrogativas às ordens e os privilégios às cidades... A monarquia perde-se logo que o príncipe, relacionando tudo a si próprio, chama Estado à sua capital, chama capital à sua Corte e Corte à sua pessoa...logo que retira aos grandes o respeito dos povos e os transforma em seus instrumentos do poder arbitrário". Vai, no entanto, mais longe e considera que a própria virtude, o princípio da democracia, tem também necessidade de ter limites: "é uma experiência eterna que qualquer homem que tem poder é levado a abusar dele,vai até onde encontra limites. Quem o diria? A própria virtude precisa de limites".

13.2.09

O PS bonapartidarizado, em delírio de democracia plebiscitária


Começam hoje as directas para o PS que vive em pleno bonapartismo. Era como se os democratas norte-americanos tivesse que escolher entre Obama e a falta de adversários, através de um processo eleitoral onde, em vez de possibilidade de escolha de uma alternativa apenas se tivesse que plebiscitar o chefe que perdeu o estado de graça e é o inimigo público de todas as oposições, onde o PSD já alinha com as manifestações pinóquias da CGTP e da FENPROF. Aliás, pode ser que amanhã, os semanários de sábado tragam novas sobre o caso "Freeport", agora enredado na investigação à própria investigação, dado que ninguém liga ao que disse Eanes e Medeiros Ferreira, depois de Edmundo Pedro e Manuel Alegre, essa gente dos golpes e contragolpes, dos exílios, das clandestinidades e dos romantismos poéticos, conforme me poderia dizer um desses prebendados, nomeado gestor de empresas de capital público e que agora vai a todos os actos de bate-palmas, depois de apagar partes pouco lícitas do "curriculum" e enganar o ministro que por ele meteu cunho.

Por isso declarei hoje ao jornal "Público":  "O Presidente, mesmo que não queira, passou a ser olhado com expectativa como rosto de oposição ao Governo. Muita gente fica à espera do que vai dizer, que palavra tem a dizer, o que prejudica muito o PSD e Manuela Ferreira Leite". Mas os sinais de crise são também dos próprios partidos, que os conduz a um défice de participação, porque "os partidos perderam capacidade de debate" e "há uma certa degenerescência, com este tipo de vitimização [da parte de Sócrates]. No passado já houve alguns casos. Cavaco Silva inventou o tabu, e apesar de nova maioria absoluta, saiu. António Guterres, nas eleições de 1999, ficou a um queijo da maioria e abandonou depois o Governo". O absolutismo das maiorias pode levar àquilo que um dia disse Fernando Pessoa: "vencer é ser vencido".

Se a democracia se enclausurar no discurso de Santos Silva, tanto na sua versão do malhão, à José Agostinho Macedo, ainda em mero caceteirismo intelectual, de extracção trotskista, como na professoral teoria do monopólio da inteligência, proclamando que não recebe lições de democracia antifascista de ninguém, corremos o risco de esquizofrenia. Por isso, tem sido um estílumulo para a democracia dos que recusam o obedencialismo a palavra experimentada de Eanes, que veio reavivar o sentido profundo do 25 de Abril de 1974, reavivado pelas lutas do PS, do PPD e do CDS, concretizadas em 25 de Novembro de 1975 que deram força ao acto eleitoral de 25 de Abril de 1975. Porque a democracia apenas começou a ser praticada quando acabou a ameaça de terror da chamada "torrente revolucionária", expressão de Robespierre, que traduzimos por PREC.

O PS, se tem o dever de plebiscitar o líder, como sempre foi seu timbre, não pode ceder a certos desvarios da solidão do poder. Uma qualquer vitória aritmética, seja de maioria absoluta, seja de maioria relativa, pode levar ao tabu ou ao pantanal. Não exportem para o país os vossos problemas internos, o teatro cheio com camionetas vindas de Cabeceiras de Basto ainda não é o povo português. Por outras palavras, também é abuso de poder aquilo que Montesquieu dizia do pretenso excesso de virtude, como acontece com as eleições directas para as lideranças partidárias, tal como têm vindo a ocorrer no CDS e no PS, onde o excesso de democracia formal está a asfixiar o pluralismo de debate da democracia real. O exagero de democracia pode matar a democracia, quando nos esquecemos que a própria virtude tem de ter limites, isto é, o bom senso do cláasico sentido das medidas, a fim de não cair na caricatura... 

Ainda há pouco repeti estas ideias em directo no Rádio Clube, acrescentando que corremos o risco de entrar na subpolítica, porque "polis" é o mesmo que "urbs" e subpolítica tem a ver com este ambiente de degenerescência suburbana, onde no centro do Estado podemos repetir o que se passou em Felgueiras, em Gondomar ou em Oeiras, bem à imagem e semelhança daquilo que o PS clamava como défice democrático da Madeira, onde as maiorias absolutas não conseguem ocultar a falta de igualdade de oportunidades no debate democrático, dado que quem tem o palanque do situacionismo oficial, ou oficioso, tem o monopólio da palavra e, consequentemente, o quase monopólio do poder. O João Soares não deixaria que os observadores da OSCE não detectassem, como supervisores, estas cenas bielo-chinocas...

12.2.09

Darwin, com socialistas a reconhecerem que pode haver um César, aqui e agora, e homossexuais a admitirem que a Igreja Católica tem o monopólio de Deus


Neste dia de aniversário de Charles Darwin, importa reconhecer que o evolucionismo gerou alguns descendentes do despotismo, como um tal Mugabe, enredado noutro aniversário, com prendas milionárias pré-determinadas e muita lagosta. Porque Darwin aplicado às teorias sociais, com as ideias de selecção natural, luta pela vida e sobrevivência dos mais aptos, gerou todo um esquema causalista e determinista, desde o evolucionismo de Herbert Spencer, com a ideia de organismo social, considerando que as relações existentes entre todos os organismos vivos, sejam as de luta pela vida ou de cooperação, são as mesmas que as existentes nas relações entre os animais ou entre os homens, ao próprio marxismo que, como reconhece Lenine, foi por ele dominado.

Mesmo os irmãos-inimigos do neo-reaccionarismo, como Charles Maurras, defenderam a selecção do mais apto, considerando que na biologia, a igualdade só existe no cemitério, porque a divisão do trabalho implica a desigualdade das funções, porque o progresso é aristocrático. Nem sequer escaparam os defensores determinismo geográfico e os do determinismo racial, como Taine. Por outras palavras, da extrema-esquerda à extrema-direita, do comunismo ao reaccionarismo, passando pelo racismo, todos inventaram criaturas ideológicas que o invocaram como criador.

Se é justíssima a lembrança de um dos maiores pensadores de todos os tempos, importa também notar as limitações ideológicas dos respectivos invocadores. Ficam apenas as palavras de Lenine: Darwin pôs fim à concepção segundo a qual as espécies de animais e plantas não estavam de modo nenhum ligadas entre si, sendo acidentais, 'criadas por Deus? e imutáveis, e que foi o primeiro a dar uma base estritamente científica à biologia, estabelecendo a variabilidade e a continuidade das espécies. E recordo-as para podermos compreender como grande parte da nossa elite, a que se arrependeu do marxismo, aproveita a homenagem para, matando o pai Marx, continuar a seguir o avô, mas sem perceber que ele teve, como netos,  asquerosos racistas, limitados reaccionários e pretensos cientistas da máquina do Estado, sejam darwinistas ou não darwinistas, crentes ou agnósticos, à boa maneira daquele Trofim Lysenko que, enganando-se nas sementes, levou a União Soviética à fome.

Veja-se o ambiente de sociologia de luta que marcou o nosso dia parlamentar de ontem, onde pareceu que voltámos a um ambiente de macacos evoluídos, quando os insultos incendiaram aquilo que devia ser um exemplo: a casa da nossa democracia. Os guinchos do argumento fraco, superaram a serenidade persuasiva do discurso do argumento forte, como assinalava Brito Camacho, só porque as caricaturais hipérboles do imaginário de Pinóquio de uma jota irritaram quem se vitimiza como alvo de uma campanha negra. Como se quem estivesse contra o detentor do poder supremo tivesse que cair necessariamente nas perguntas insultuosas. E a histeria foi de tal maneira de  mau-gosto que até Louçã vestiu o heterónimo da moderação, enquanto o patrão da Jerónimo Martins veio a terreiro dizer que a "iniciativa privada não tem que aturar isto" e tem "muitos sítios para onde ir".

Face à demagogia, os gestores das conferência de imprensa da Igreja Católica entraram no sofisma sacrista do bate e foge. Num dia, por causa dos casamentos de homossexuais, mandaram não alinhar com partidos que ofendam os respectivos valores. No outro, pondo água na fervura, e lembrando-se dos resultados do referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez, vieram esclarecer que mandar não votar em determinadas ideias não pode qualificar-se como apelo ao voto, o que logo levou Sócrates a congratular-se expressamente, depois de assumir a sua pobreza franciscana da classe remediada alta e talvez pensando na sugestão do ex-bastonário Pires de Lima sobre a transparência do respectivo património. Aliás, deputados e representantes do grupo de pressão LGT logo citaram Jesus Cristo, sobre o dar a Deus o que é de Deus e a César, o que é de César. Com socialistas a reconhecerem que pode haver um César, aqui e agora, e homossexuais a admitirem que a Igreja Católica tem o monopólio de Deus. 

Como ontem dizia ao Meia Hora, antes da segunda intervenção da CEP, esta atitude da Igreja “é uma espécie de chicotada psicológica para levar o PS a negociações e a uma solução de meio-termo”. Com efeito, “o pior que podia acontecer agora era um conflito entre política e religião” e, como tal, “vai haver alguma pacificação”. Até porque “a Igreja não tem poder de mobilização de massas e de mobilização política e também nunca o fez”. Aliás, se tomarmos à letra a promessa de Sócrates, a discussão pública pode levar a uma espécie de armistício moral, se nos iluminarem exemplos de legislações europeias, há muito consensualizadas, que não confundiram a necessidade de protecção pública da liberdade contratual dos homossexuais, com um metacontrato ou instituição que, antes de ser do direito canónico já era do direito romano. Porque a mera analogia, de um contrato, não pode confundir-se com a essência de outra coisa, já  institucional, independentemente do sacramento, que é bem mais do que a bilateralidade, tendo a ver com o conceito de corrente de geração, e que permanece mesmo quando o contrato é anulado ou entra em divórcio, porque novas formas de família, nomeadamente as monoparentais, podem continuar e reforçar a ideia de obra que a liga aos avós e aos netos.

É por isso que reli The Origin of Species, trabalho publicado em Novembro de 1859, onde Darwin considera que todos os organismos têm tronco comum, que todas as espécies vivas são resultado da evolução e da selecção natural. In the survival of favoured individuals and races, during the constantly-recurring struggle for existence, we see a powerful and ever-acting form of selection.


11.2.09

Todos os Poderes souberam e sabem que a revolta é latente mesmo na obediência mais submissa


Com a fragmentação partidária de Israel equivalente à de Timor Leste, onde, face a coligações pós-eleitoral, quem aritmeticamente ganhou, em termos relativos, pode ir para a oposição, os partidos lusitanos fazem contabilidade de meros cenários, com o situacionismo a utilizar a técnica do dividir para reinar, fragmentando a oposição em dois mundos sem ponte, o da direita, agora à procura da verdade, e o da esquerda, entre os plebeus e os chiques do Bairro Alto. E cresce a politiquice da imagem, sondagem e sacanagem, depois de secarem as fontes das fugas de informação sobre o chamado "outlet", coisa que se vislumbrava depois de um jornalista do "Expresso" ter ido à televisão confirmar que uma das principais emissões provinha da magistratura, ao mesmo tempo que anunciava o esfriamento noticioso. Por outras palavras, agora apenas resta o ritmo dos assistentes, enquanto alguns jornais já começam a tirar poeira a outros arquivos.

Daí que se volte a ouvir Mário Soares, mais uma vez contra a roubalheira que andou pelos meandros de certa banca, ao mesmo tempo que continua o ritmo de luta contra o medo de alguns socialistas dissidentes. Surgiu essa categoria a que Baptista Bastos dá hoje o nome de homens sem reino, gerada por esta circunstâncias: vivemos na indiferença porque o medo está presente e a presença do medo dá azo à resignação.  Do mesmo modo, Ramalho Eanes, ontem proclamou que vivemos com medo do presente, do futuro, pelos filhos, pela sorte dos pais, pelo emprego e medo dos poderes políticos. 

Porque medo vem do latim metu, inquietação produzida pela eminância de um perigo, real ou aparente. E já Étinne La Boétie, em 1548, proclamava: N'ayez pas peur... Soyez résolus à ne plus servir, et vous serez libres, quando denunciava a servidão voluntária, como base da tirania. Também no século XX, o italiano Ferrero observava:  o Poder tem sempre medo dos sujeitos que comanda todos os Poderes souberam e sabem que a revolta é latente mesmo na obediência mais submissa, e que pode rebentar num dia ou noutro, sob acção de circunstâncias imprevisíveis; todos os Poderes sentiram-se e sentem-se precários na medida em que são obrigados a utilizar a força para se impor a única autoridade que não tem medo é a que nasce do amor. 

E Erich Fromm, em Fear of Freedom, de 1941, criticava a despersonalização do homem moderno, porque as relações sociais perderam o carácter directo e humano, dado que passaram a ser regidas pela lei do mercado que transformou o indivíduo em mercadoria. Daí que o indivíduo, para escapar à instabilidade da sua solidão, tenha criado mecanismos de evasão. Ou foge para o conformismo dos autómatos; ou para a destrutividade, tanto pela destruição do outro como pelo autoritarismo. Umas vezes, entra no masoquismo, dissolvendo-se no conjunto. Outras, no sadismo, quando actua segundo as regras desse conjunto e trata de perseguir os marginais ou de fazer a guerra. A vontade poder não é um produto da força, mas a filha bastarda da fraqueza. O homem subjugado tem, assim, uma personalidade autoritária. O que explica o fascismo, dado que este permitiu que as massas satisfizessem os seus impulsos sadomasoquistas identificando-se com os poderes dominantes.
E tudo se agravará se as escolhas eleitorais forem ofuscadas pela questão do casamento dos homossexuais, com a Conferência Episcopal Portuguesa, sob o papado de Bento XVI, a anunciar apelos ao voto contra os partidos que quiserem alterar o conceito de casamento do direito romano pré-cristão e do direito canónico.

Tentando alguma serenidade analítica, proponho que escolhamos um destes dias e que nos desliguemos dos meios de comunicação social portuguesa, fechando-nos à blogosfera, aos telejornais e às noticias radiofónicas, ou em papel. Retiremo-nos integralmente para meios de comunicação social de um outro país europeu, por exemplo de Espanha. E lá teremos, nos horários nobres informativos, as mesmas filas do desemprego, as mesmas empresas que encerram, os mesmos ministros bombeiros com águas dos fundos públicos jorrando sobre os problemas. Pelo menos, compreenderíamos que a actual crise portuguesa situa-se numa crise mais ampla, onde os ministros fingem que o velho Estado soberanista ainda consegue o proteccionismo keynesiano das autarcias macro-económicas ou monetaristas, quando ele apenas pode gerir dependências e interdependências.

Conseguirão escapar do naufágio mais depressa os que ainda dispõem de instrumentos ágeis nos espaços de liberdade estadual que ainda restam, como, por exemplo, na administração judiciária, nos aparelhos educativos, nos mecanismos policiais, ou nos serviços públicos de saúde, de recolha de impostos ou da segurança social. Todo um conjunto de áreas de políticas públicas onde se mostra a nossa ineficácia, dado que, ao desinstitucionalizarmos os velhos corpos do antigo Estado, apenas ficámos com meia dúzia de papeletas tecnocráticas, ao estilo do chamado PRACE que, ao que parece, apenas se aplicou na Madeira, para inglês  ver e "outsourcing" funcionar.

O casamento de homossexuais poucos votos vai transferir do Bloco de Esquerda para o PS e só pela obstinação dos grupos institucionais LGT é que não se opta pelo gradualismo de legislações como a francesa e a britânica, as quais, com realismo, conseguiram a igualdade real, pela técnica de se tratar desigualmente o desigual, estabelecendo um novo tipo contratual, estadualmente reconhecido, que foi  além da mera união de facto. Se, quanto ao perfil institucional, estamos quase todos de acordo, incluindo os senhores bispos, parece que o problema reside no nome de baptismo da coisa. Proponho que se lhe dê o nome que todos lhe dão: "casamento de homossexuais". Mas também proponho que a administração fiscal cumpra a lei e aplique os seus mecanismos a uniões de vida não homossexuais, emitidas por lei do mesmo dia em que saiu a dos uniões de facto, regulamentando o processo. 

10.2.09

Prefiro reflectir sobre o ambiente retrospectivo da série de Salazar


Muito raramente transcrevo cartas e comentários sobre os meus postais. A este, não resisti e transcrevo com a devida autorização.  As tribos, como dizia o António Alçada Baptista são assim: mesmo que não estejam juntas no dia a dia, as lealdades das interpretações do mundo vincularam e vinculam os valores sem qualquer arredo.

... confesso professor que a preocupação que transparece da sua opinião sobre esta ficção da vida do dito me deixou ainda mais preocupada sobre o impacto que a mesma poderá ter tido. Devo dizê-lo pois julgo ter intuído comum apreensão.

Não creio que tenha sido apenas pelo despudor do voyarismo que muitos gostaram de julgar que finalmente viram o ditador em actos próprios de homem-macho que nestas andanças sucumbe às anjas que o provocavam.

Não, não creio na bondade do relato televisivo das botas do pobre, sem que o mesmo tenha sido responsabilizado por usar os outros à exaustão de muitos géneros de mortes e, necessariamente à custa da voz e da alma dos mesmos ter reinado numa versão de vida.

Fazer sentir a muitos dos que viram este relato de hiato que ainda assim o todo poderoso tinha o justo direito de tentar afogar as suas próprias frustrações, naquele mar que, de pés descalços enfrentava de mansinho e corcovado, enquanto os guarda-costas nas arribas lhe acudiam em protecção de inefabilidade prestável e sem limite é o mesmo que não partir a infinita treva a um mundo de gente que, como afirma o Professor, não terá interpretado “o travo que nos fica, depois de assistirmos a essa nova versão da Emmanuele de Santa Comba, quase ameaça a democracia, ao mostrar-nos um estadista que alcançou o cognome que também marcou Robespierre, o de incorruptível, mas, tal como o seu irmão-inimigo jacobino, também dado ao terror. Mesmo com os vícios de seminarista e de namorado frustrados, o essencial da mensagem tem a ver com o pecado natural de um humano, demasiado humano.. (…) e faltam-nos menos de dez anos para completarmos, neste regime, o tempo que durou a governação de Salazar.”

Será que houve a pretensão de se humanizar a criatura ao colocá-la a pintar as unhas dos pés e assim atribuir caução de vida a uma outra que a não tem?

Será que se tem de chamar a atenção deste modo para o facto de uma Nação ter sido uma ervita pisadita pelas botitas de um obsessivo sempre velho e bolorento e suposto justiceiro que para além de sonetar sonetos não contabilizou nenhum humano com mera partícula de vontade?

Creio que o que as pessoas viram nestes dois episódios, nem sequer foi o infra mundano suposto mundo de um tiranete de segunda. Infelizmente algo se passou também naquela queda na banheira. É que o nebuloso contador de estorias às pupilas, era ele, imagine-se! um frágil – térmita não descortinado - disfarçado de gente, magro, de carne velha e entortada pelo peso das ideias. E eis que sem energia depois de tanto drimblar o rumo do universo ao alcance do cobertor que lhe aquecia os joelhitos, para não gastar ao país um tostão que fosse do tesouro alheio, pois que aquele que verdadeiramente lhe interessava e usava e debulhava e com o qual entretinha os olhos corrodentes, estava sob a alçada «do filho do feitor do seu marido» tal a frase que lhe granjeou a apoteose da própria D. Maria e conseguida no dia em que a madrinha lhe terá telefonado.

Professor, atentemos na desproporção do entendimento que ainda reina e reflictamos sobre qual foi o provocador objectivo atingido.

Pergunto-me se estamos condenados a estiolar num declínio constante ou se acaso o inicio já pereceu de tantas hipóteses de ideias fixas terem tido êxito?

Pois é , não basta que a história sempre tenha sido o género literário mais próximo da ficção, tal como cita. Não, não basta. Assim como o pecado original se tem propagado por contágio hereditário, também de geração em geração se propaga a não luz da não razão.

É imperioso que a interpretação se não coagule, e como um dia falámos, a liberdade até nos intervalos deve viver.


M. Teresa Ribeiro B. Vieira

9.2.09

A história sempre foi o género literário mais próximo da ficção


Confesso que tenho assistido, entre o sofá e a secretária,  mas com todo o cuidado auditivo, à série do Salazar garanhão, a perder a fé, dado a bruxarias e à variedade dos concubinatos, típicas das recaídas pagãs, como se pagus não fosse aldeia, etimologicamente falando, e não fossem tradição as teúdas e manteúdas dos grande chefes dos vícios privados, virtudes públicas. Também verifiquei, um pouco antes, na mesma SIC, como Mário Crespo, ao vivo e em directo, não conseguiu driblar a Maria José Morgado, vestida com o heterónimo de Pinto Monteiro, a qual lá escapou das candidices  e foi sempre magistralmente correcta, sem necessidade de usar o chinelo, como às vezes faz contra Pinto da Costa. E logo imaginei que a próxima entrevista do programa seria a de Crespo com Câncio, depois da bela polémica escrita que os dois estabeleceram, com Sócrates em pano de fundo e o ministro Silva Pereira reduzido a um registo de pressões frustradas pelo telefonema prévio, que não foi ilícito, que não foi imoral, mas que revela a pouca vontade de combate nos domínios do imprevisível. 

Claro que não pensei mais em Marcelo e em Ferreira Leite, depois de prestar um depoimento ao gratuito "Meia Hora" e que, hoje, faz parangona de primeira página, quando subliminarmente declarei que Cristo prepara a sua descida à terra, porque é, talvez, a última oportunidade de o professor, das domingueiras missas laicas, ser primeiro-ministro de Portugal. Claro que também não alinhei no propagandismo de Santos Silva contra a bisneta de José Dias Ferreira, a quem assinalei a tenacidade de cumprimento da abstracção programática, independentemente desta alteração anormal das circunstâncias, embora tenha observado que ela ficou enredada neste ambiente de confronto das grandes potências no sistema, dado que se assume como mera potência secundária de Cavaco. Esta parte das declarações não foi seleccionada, coisa correcta de critério editorial, face ao tom da peça publicada. Embora esteja escaldado porque ainda há semanas um grande jornal me pediu um comentário sobre uma intervenção da líder do PSD e que, então, saiu objectivamente elogioso, mas que foi apagado e nunca saiu, porque a onda dominante era, então, a de malhar na senhora, mesmo sem telefonemas de ministros ou da máquina de campanha cor de rosa.

Prefiro reflectir sobre o ambiente retrospectivo da série de Salazar, procurando esconjurar os fantasmas salazarentos. Porque o travo que nos fica, depois de assistirmos a essa nova versão da Emmanuele de Santa Comba, quase ameaça a democracia, ao mostrar-nos um estadista que alcançou o cognome que também marcou Robespierre, o de incorruptível, mas, tal como o seu irmão-inimigo jacobino, também dado ao terror. Mesmo com os vícios de seminarista e de namorado frustrados, o essencial da mensagem tem a ver com o pecado natural de um humano, demasiado humano.

São perigosas estas viagens pelas intimidades da tal história que, conforme dizia um ministro de Salazar, Armindo Monteiro, depois de saneado, é o género literário mais próximo da ficção. São, sobretudo, perigosas neste momento em que o regime democrático ameaça degenerescência, até porque nos faltam menos de dez anos para completarmos, neste regime, o tempo que durou a governação de Salazar. Um autoritarismo que, apesar de ter no cume um incorruptível, também viveu rodeado de corrupção, promovida pelos mesmos agentes que, agora, estão apodrecendo este nosso péssimo regime, mas, com toda a certeza, o menos péssimo de todos os que tivemos desde o terramoto pombalista, quando o despotismo ministerial destruiu o consensualismo da lusitana antiga liberdade.

Por mim, ainda estou disposto a lutar pelos tradicionais princípios e valores demoliberais, mas acredito que, sem a restauração da república, contra aquilo que Salazar clamava como a fina flor da plutocracia, corremos o risco de continuarmos sujeitos ao arbitrário do domínio perpétuo do acaso e do governo dos espertos. Espero que os nossos responsáveis partidocráticos entendam estes sinais do tempo, auscultando como a opinião pública observa esta viagem pela memória salazarenta. E a melhor maneira de denunciarmos esta pesada herança é a de sublinharmos que o Estado Novo, com o seu condicionamento industrial, criou uma estufa de proteccionismo para as forças vivas da inércia, assentes numa economia privada que nunca foi pluralista e competiva, isto é, economia de mercado, sem fidalgotes a queimarem e a exilarem os judeus e cristãos novos.

Salazar foi o pior dos adversários do espírito liberal e não apenas pela intolerância e a persiganga policiescas do autoritarismo. Mantendo o despotismo ministerial do pombalismo e algum caceteirismo da viradeira, foi um efectivo primeiro-ministro de um imaginado rei absoluto, entre a esquizofrenia de João Franco, que matou a democracia, e o neofradesco inquisitorial. Caso não esconjuremos este avô tirano, nunca repararemos como é impossível, pela natureza das coisas, um qualquer salazarismo democrático, porque um regime misto, como deve ser a democracia pluralista do Estado de Direito, nunca pode fazer desabrochar as sementes da ditadura, incluindo a tecnocrática ditadura das finanças. Mesmo o apelo ao anticapitalismo, que vai da Convenção do Casal Vistoso aos discursos pretensamente progressistas da moção de Sócrates, quando já não há soberanismo, são meras drogas ideológicas que não nos curam de uma doença que precisa urgentemente de um direito público universal, e não das ilusões albanesas. Porque alguns acreditam na hidra denunciada por Santos Silva sobre o assassinato moral de Sócrates, é natural que se restaure moralmente Salazar, num esquema directamente proporcional à nebulosa dos preconceitos de esquerda e dos fantasmas de direita que nos enredam.