a Sobre o tempo que passa: Nem tudo o que é lícito é moralmente recomendável ou politicamente exemplar

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

25.1.09

Nem tudo o que é lícito é moralmente recomendável ou politicamente exemplar


Neste fim de semana, com três sucessivas intervenções na TSF, na Sic-Mário Crespo e no Rádio Clube Português, em todas elas fui apanhado pelos dejectos do caso de polícia que faz as primeiras páginas. A situação pantanosa e os muitos tabus, dependentes do equilíbrio dos queijos limianos, de mais um ou de menos um deputado, com o parlamento ao ritmo de RGA, são péssimos sinais de um tempo que exige uma governança assente na confiança pública, para que toda a república possa ser mobilizada para o bem comum. Não podemos continuar dependentes de cartas rogatórias das autoridades britânicas, as mesmas que mandaram matar Gomes Freire ou que enredaram um anterior chefe do governo num escândalo, o do "affidavit", que enlameou Costa Cabral e a rainha D. Maria II.

Por causa de toda esta fumarada, não reparámos na falência da Quimonda nem tivemos suficiente altura para acompanharmos a esperança de Obama. Porque, mesmo sabendo que uma andorinha em Washington não faz a Primavera, nem por isso era de preferir a continuação dos abutres. E recordando os norte-americanos, talvez fosse útil lembrar que foi o jornalismo de investigação que denunciou o Watergate, mas que tais "mass media" não conseguiram vislumbrar o lado negro de John Kennedy, hoje provado.

Do Freeport, apenas apetece voltar a glosar Cícero: nem tudo o que é lícito é moralmente recomendável ou politicamente exemplar. Guterres, com Sócrates, tal como Santana, com a febril actividade de despachos nos últimos segundos de vida de um governo de gestão, devem ser banidos como paradigmas. Porque, um quarto de hora antes de morrerem, todos os governos devem não pisar tanto as fronteiras do ilícito como as do politicamente reprovável, ou do moralmente execrável, em termos cívicos. Até porque não são os magistrados que os podem absolver em termos políticos ou morais. Um Estado de Direito não é apenas um Estado de Legalidade, como pode ser uma ditadura. O despacho depende do regulamento, este depende da lei, a lei está abaixo do direito, o direito é irmão da política e ambos dependem da justiça, da tal justiça que implica uma moralidade cívica, uma moral de costumes, uma way of life marcada pelo alterum non laedere, pelo suum cuique tribuere e, acima de tudo, pelo honeste vivere, onde o honesto não tem a ver com o certificado passado pelo regedor da paróquia, mas antes com o imperativo categórico, não medido pelo meramente útil, mas pelo actua de tal maneira que, da tua conduta, se possa extrair um exemplo de vida.

A própria prudência deve aconselhar os ministros em gestão a não despacharem os maiores "outlets" e e "casinos" da Europa nesse tempo de vésperas. Porque, depois, ficam todos enlameados, mesmo que não tenham pessoalmente rabos de palha. Valia mais que os grupos de pressão e os grupos de interesse fossem legalizados e actuassem à luz do dia, como nos Estados Unidos ou no Parlamento Europeu. Valia mais que os promotores do Freeport ou os Casinos de Stanley Ho pudessem ter contratado lóbis registados, em vez de servirem de pretexto para a nossa Dona Maria da Cunha da endogamia e da sociedade matriarcal, plena de tios e sobrinhos, cunhados e genros, onde o que parece acaba por enredar alguns que não devem ter nada a ver com as trapalhadas. E quem atirar pedrados aos telhados de vidro do vizinho ou adversário pode chegar a casa e achar as suas vidraças totalmente quebradas.

Por mim, confesso, não se me afigura que Sócrates possa estar envolvido em recebimentos e pagamentos, do género dos insinuados, de forma directa ou indirecta. As eventuais imoralidades ou irregularidades políticas têm sido pasto em todos os governos de todas as áreas políticas. Até acredito que Sócrates quis continuar a ser um gajo porreiro, ao ceder ao pedido do tio, ou do camarada autarca, naturalmente interessado em trazer para o seu concelho aquele investimento.

Infelizmente, todos actuaram em terreno minado pelo mau ambiente e sofrem agora os efeitos da desfragmentação. De qualquer maneira, o jornalismo de investigação cumpriu o respectivo dever. As polícias e os magistrados, ao investigarem, depois de novos impulsos processuais, eventualmente vindos da cooperação judiciária europeia, também não se detiveram perante a figura de um político com a dimensão do primeiro-ministro. E o PGR fez bem ao acordar o que estava no limbo. Tal como quase todos os meios de comunicação social seguiram o evento, com anteriores comentadores de simpatias socráticas, a enunciarem críticas dolorosas para o chefe. Isto é, a democracia ganhou e o governo PS, apesar de muitos propagandismos e alguns intervencionismos mais esquisitos, merece ser elogiado pela co-responsabilização face ao actual perfil de magistraturas e de polícias, mesmo que não concordemos com o modelo, dado que preferimos o norte-americano, com um ministro da justiça politicamente responsável que fosse procurador-geral, com um programa de política do direito, à maneira do pretor da república romana ... sempre era melhor do que sofrer ataques de fugas de informação, manejadas por agências de comunicação de lóbis, que eventualmente recrutem ex-assessores de imprensa, ex-espiões e ex-polícias para campanhas negras, segundo o ritmo neopidesco.



Porque estamos perante um caso de polícia. E é desgradável que a pessoa do primeiro-ministro de Portugal sofra as consequências de uma sociedade endogâmica e matriarcal, entre a D. Maria da Cunha e muito nepotismo em sentido etimológico. Para bem de todos, seria conveniente que, a curto prazo, ele conseguisse libertar-se das insinuações. Porque se ele deve ser atacado politicamente, é totalmente cobarde que o seja pela estratégia indirecta de certo inquisitorialismo e certo neopidismo de que também já foi vítima, nomeadamente com a campanha de boatos que o tentou despudoradamente destruir na última campanha eleitoral.