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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

16.10.08

No acaso procurado de uma espera de pátria prometida, depois da guerra e do império


Depois de um longo mar, bem calmo, por onde me reparti, bem longe de quem estou, veio a ilha, em mar largo. É por aí que vou cumprir meu sonho, nesta procura. Foi por cima de um largo mar azul, pejado de ilhas e ilhotas, corais e ondas brancas que a orla foi de ilha em ilha, passando os confins da Ásia até à Oceania. Navegar é preciso, viver, sobrevivendo, já não é preciso. Porque os sonhos que sonhei e agora recordo têm a emoção cósmica de um novo mundo que sempre podemos ter para descobrir. Para que o vulcão do lirismo possa mais uma vez romper dentro de mim.


O chegar foi muito mais forte do que as palavras que o poderiam expressar. Porque muitas memórias me vieram, do fundo da alma, nestas brumas tropicais. Como os sonhos que fui tendo noite dentro, onde se misturaram casas e terras do passado, encruzilhadas, projectos de vida por cumprir. E, sem saber porquê, mais fundo, um sinal de flor, um terno olhar, de uma beleza imaculada, como ave que se passeia por cima do arvoredo. Não estava longe, mas no seu lugar, porque é assim que, em paz, podemos ir além do breve espaço de tempo a que chamamos vida. Porque a esperança pode ser eternidade, se nos diluirmos no tempo sem tempo, de um Deus a que muitos chamam mundo.


E sempre o desejo de voltar ao sítio para onde vou, porque, só depois do fim, hei-de lembrar. Nasci para chegar além de mim, para permanecer em espírito, para além do estar aqui, mas onde, de vez em quando, me vêm sinais do infinito de que também sou feito. Eu, indiviso, indivíduo, pequeno pedaço do imenso, para onde tendo, naquilo a que muitos gostam de chamar metafísica, coisa sobre que sei que nada sei. Mas o caminho místico que me dá este ambiente de trópico faz, afinal, com que regresse para seguir em frente.


Aqui e agora, olhando por mim dentro, voltei a ser menino que procura o que se esconde para além da curva do caminho. E peregrinando meus confins, nos antípodas do que dizem ser o sítio onde nasci, é mais perto de todos os outros que, dentro de mim, já me acho. Porque, vivendo o mistério deste sol nascente, é mais perto do eterno a que me chego. Nesta serenidade de olhar um mundo que me volta a dar o sonho da procura do paraíso. Até, vestido de Camões e Mendes Pinto, trato de procurar Portugal, assim fora de Portugal, dando-lhe os muitos nomes com que os portugueses à solta, do império sombra, foram registando estes mares dantes nunca navegados. E assim diluindo-se em todos os outros, nos foram dando o ser universal que nos abrasa.


É esta nossa metafísica de aventura, de correr todas as sete partidas que sempre foram semente do abraço armilar. É esta fidelidade avoenga que nos obriga muitas vezes à resistência e à rebeldia. Andar sempre em partida, eis meu lugar, para poder cumprir a missão de ser simples parcela de uma corrente de sonho e pensamento que me transcende. Para que meu corpo possa servir a alma que o mobiliza.


E vieram asas para que sou procura. Pequenos pedaços de um sinal do tempo para onde voo. Um indefinível mistério que se cruzou comigo, no acaso procurado de uma espera de pátria prometida, depois da guerra e do império. Porque, no mar, é o princípio e serei sempre o procurar.