a Sobre o tempo que passa: Nestes amanhãs que cantam do século XXI, apenas continua a ser novo aquilo que se esqueceu

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

4.7.08

Nestes amanhãs que cantam do século XXI, apenas continua a ser novo aquilo que se esqueceu


Porque todas as revoluções são mesmo pós-revolucionárias, o nossso 25 de Abril nunca foi Otelo nem Salgueiro Maia, mas Soares e Cavaco, tal como agora é Sócrates e Manuela Ferreira Leite, e tal como, amanhã, pode passar a ser Manuel Dias Loureiro e António Vitorino, essas personificações do transcendente do nosso regime, onde o bastonário dos advogados é o Dr. Marinho Pinto e o presidente da Federação Portuguesa de Futebol continua a ser Madail, o tal que foi buscar Scolari e que bem poderia contratar, no mercado das consultadorias empresariais da globalização, um novo chefe do governo desta pilotagem automática sem futuro, um novo líder dos progressistas do PS e um novo líder dos regeneradores do PSD, para que se continuem a construir novos estádios para as moscas, depois de um abraço de ternura entre um antigo secretário de estado e um antigo vendedor da imagem do Euro 2004, ou a entregar o cavaquismo monumental do centro cultural de Belém à colecção de arte do comendador Berardo.


Por isso, tenho de reconhecer que o Dr. Dias Loureiro não existe como simples "fait divers". Ele constitui algo de simbólico que, pela sua dimensão interdisciplinar, escapa a mera análise política, só podendo ser captado pela magia de um desses romances de costumes com que um novo Camilo Castelo Branco poderia rescrever "A Ascensão de um Anjo". Ele não é um ex-secretário geral de um dos dois partidos do Bloco Central neo-rotativista, um ex-ministro ou um ex-banqueiro e homem de negócios, ele é o próprio regime em figura humana, na sua faceta de homem de sucesso e até já subiu à glória de Mecenas da própria Universidade de Coimbra.


Infelizmente, neste tempo de comendas, já não há, no armazém das honorabilidades, a possibilidade de o fazermos conde de Tomar ou duque de Ávila e Bolama, pelo que lhe resta o caminho habitual do sistema banco-burocrático do rotativismo, um desses lugares corporativos no Crédito Predial, entre Hintze Ribeiro e José Luciano. Os elogios que teceu ao antigo militante da JSD e actual Primeiro-Ministro apenas confirmam como a esquerda moderna, a tal que, ideologicamente, invocava Eduard Bernstein, para se chamar Pinto Balsemão, Cavaco Silva ou José Sócrates, gosta de praticar a fecunda união de facto com a direita dos interesses. Por isso, as disputas entre as actuais lideranças do PS e do PSD e os jogos florais politiqueiros que ocuparam os horários nobres das nossas televisões podem começar a equiparar-se a umas primárias do Bloco Central, preparando a sucessão do Pai Bush, quando os vascos já não são santanas...

De qualquer maneira, devemos a Eduarda Maio esse belo exercício de futurologia que é imaginarmos um futuro governo de União Sagrada, com um PSD dirigido por Dias Loureiro e um PS liderado por António Vitorino, depois de José Sócrates ter sido convidado para ser o Alto Representante do Secretário-Geral da ONU para a Energia Eólica e das Ondas Magnéticas, para não ser o formal coveiro do regime, dado que as vagas dos refugiados, da luta contra a tuberculose, da aliança de civilizações e do porreiro pá, já estão ocupadas pelos nossos grandes desempregados rotativos e nenhum deles se chama Cristóvão de Moura ou Miguel de Vasconcelos, os tais geradores de ministros do reino por vontade estranha, conforme o belo poema de resistência, com que Alegre homenageou o Manuelinho de Évora.


Por isso, prefiro continuar a ler a biografia de Talleyrand, nomeadamente o capítulo sobre a conspiração de avós e netos, onde os primeiros são os ausentes-presentes dos 85 anos e os segundos, os ex-jotas meninos de ouro, para esta era da lei de bronze dos filhos de algo, que marca a nossa decadência.


Do mesmo modo, gosto imenso de recordar o processo político de um tal Guizot, que tinha como programa a banha da cobra do "enrichez vous", para uso da eterna sociedade de casino, onde se misturavam os politiqueiros honestos que escolhiam adjuntos corruptos, lado a lado com líderes inversos, os tais desonestos que tinham olho para a escolha de adjuntos honestíssimos. Julgo que o processo já está inventariado desde Victor Hugo, mas, em Portugal, nestes amanhãs que cantam do século XXI, apenas continua a ser novo aquilo que se esqueceu, dado que abundam as modas que passam de moda, só porque não reparamos que não vale a pena inventar o que já está inventado, nem descobrir o que já está descoberto. Vale mais recuperarmos a Dona Branca e o Alves dos Reis e brincarmos ao jogo da bolha, antes que a mesma rebente e nos encha de dejectos...
PS: Por estas e por outras é que amanhã, muito simbolicamente, estarei na Vidigueira a recordar Bento Espinosa, que esse, ao menos, é eterno e herético, como o demonstram as condenações que a família e ele receberam das três grandes instalações eclesiológicas do nosso ocidente, entre católicos, judaicos e protestantes, só porque era um homem livre, a querer o mais além teológico-político, a partir das circunstâncias infinitas deste mesmo aqui e agora...