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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

7.7.08

Memórias de libertação sefarditas, em tempo de novos inquisidores de facção, vivendo na lei da selva da jagunçada


Depois de dois dias no Alentejo profundo, primeiro, num colóquio no Vale do Rocim, onde sete dezenas de pessoas, mobilizadas pelo Grémio Lusitano e pelo seu presidente, António Reis, navegaram nas memórias do futuro, actualizando Bento Espinosa, bem perto da Vidigueira, terra dos seus antepassados, um pequeno salto a Moura, para ficar mais longe destas andanças da decadência capitaleira, bem expressas pelos meandros decisórios do supremo tribunal do futebol, onde o facciosisimo clubista vai destruindo a justiça.


Como se, na futebolítica,tudo fosse diferente de outras altas instâncias, onde o facciosismo pode ser meramente partidário, nessa virose que afecta altas instâncias da pátria, ao belo estilo das votações parlamentares nas comissões de inquérito ou noutras andanças, como em certos órgãos universitários, autárquicos ou regionalistas.


Hoje, depois de gastar pestanas na correcção de testes, mais um dia de vigilância de exames, que é coisa que faz parte dos deveres dos professores que não têm as altas funções directivas e presidenciais nos muitos conselhos das escolas. Por acaso, até encontrei, em idênticas tarefas, o meu decano, já que nas outras salas, as das altas figuras da hierarquia administrativa universitária, estavam os pobres assistentes e monitores. Por mim, gosto de marcar presença e de decidir no próprio local, para contactar com a realidade, sem os intermediários. Até me deparei com um dos agentes da facção situacionista, distribuindo um jornaleco de intervenção, pedindo o bate palmas ao chefe, e notei como a única maneira de evitarmos a fraude do clássico copianço está em legalizarmos o copianço, admitindo-o como parte integrante da resposta ao teste, incluindo as microfotocópias reduzidas dos textos de apoio que, talvez, venham a ser peças que oferecerei para o futuro museu do espírito de Bolonha.


Por isso, antes de mergulhar em mais uma centena de testes, que decidi analisar, um a um, directamente, porque subdecano também tem de ser operário e até de substituir assistentes, quando estes estão doentes, e de esquecer os bailados pré-eleitorais das facções em disputa na universidade, incluindo as que metem convites dos comissários políticos para almoçaradas comemorativas, utilizando-se as listas oficiais de "mailing", prefiro voltar a Espinosa e a parcelas da comunicação que apresentei no sábado, antes da chegada do belo coro dos ceifeiros da Cuba.


Porque há quatro modos ou graus de conhecimento: por ouvir dizer, por experiência, por causalidade inadequada e por causalidade adequada. E, como dizia Camus: "os antigos filósofos (naturalmente) pensavam muito mais do que liam. Eis porque se agarravam tão tenazmente ao concreto. A imprensa modificou as coisas. Lê‑se mais do que se pensa. Não temos hoje filosofias mas apenas comentários. É o que diz Gilson ao afirmar que à idade dos filósofos que se ocupavam de filosofia sucedeu a idade dos professores de filosofia que se ocupam de filósofos".


Daí que importe recordar Blandine Barret-Kriegel: no despotismo "o poder é tudo e a política não é nada, o comando é absoluto e a lei desvanece‑se" pelo que a opressão se torna "implacável e a administração ineficaz". Nele, "o público é rebatido pelo privado e o político prostra‑se no doméstico. Os litígios públicos e os debates colectivos são substituídos pelas intrigas palacianas e pelas querelas familiares".


Julgo que, nestas instituições em crise, regressámos ao estado de natureza, ao estado anterior à formação das sociedades organizadas e da ordem moral, onde temos um homem sem responsabilidade perante qualquer lei, sem saber do justo e do injusto. E até sem poder distinguir a força do direito, um homem ainda submetido às paixões, vivendo num estado de insegurança, onde o direito se confunde com o poder, onde cada um goza de tanto direito como o poder que possui, um homem que, como Deus, tem direito a tudo e o direito de Deus não é outra coisa senão o seu próprio poder enquanto absolutamente livre, segue-se que cada coisa natural tem por natureza tanto direito como o poder, para existir e actuar, onde o direito natural de toda a natureza e, por isso mesmo, de cada indivíduo, estende-se até onde chega o seu poder (é Espinosa a falar).


Porque neste estado de natureza, os homens actuam pelo instinto universal de conservação, relacionando-se uns com os outros, tal como os peixes grandes devoram os peixes pequenos, segundo a lei de destruição do mais débil pelo mais forte. Estamos bem longe de ter nascido a simpatia de uns pelos outros e o sentimento de humanidade, esse esforço de racionalidade que pretende superar o regime das paixões.


O fim do Estado deveria ser libertar os homens do "terror para que possam viver e agir em plena segurança e sem perigo para si e para o seu vizinho. O fim do Estado não é transformar seres racionais em brutos ou máquinas. É habilitar o corpo e o espírito dos cidadãos a um funcionamento normal. É levar os homens a viver exercendo livremente a sua razão para que não desperdicem a força em ódios e fraudes, nem se conduzam deslealmente. Assim, o verdadeiro fim do estado é a liberdade".


Polis é povo, societas e contrato. É povo politicamente organizado, é comunidade e é instituição. É sociedade organizada, dotada de um poder supremo, tendo um status politicus ou civilis (uma estrutura política), uma civitas (um corpo íntegro, um conjunto de indivíduos associados) e uma res publica (a administração dos assuntos comuns da governação), como assinalava Espinosa. É, como dizia Rousseau, acção do todo sobre o todo, o tal ser comum feito de uma multidão de seres razoáveis. É, nas palavras de Aron, a colectividade considerada como um todo. Ou, para subirmos à perspectiva de Kant, um Estado-Razão, o tal contrato original pelo qual todos os membros do povo limitam a sua liberdade exterior, em ordem a recebê-la de novo como membros da comunidade, o povo olhado como universalidade. Onde a vontade geral, o omnes ut universi, é a vontade do geral, a vontade do universal.

Impõe-se, portanto, que cada polis, segundo os termos do mesmo Kant, seja res publica, potentia e gens, que seja, ao mesmo tempo, comunidade, autonomia e nação, que seja associação de pessoas, com poder, mas enraizada numa comunidade de gerações. Não basta o contrato, mas não se exclui o contrato. Exige-se algo de mais: instituição, comunidade. Mas sempre através do plebiscito de todos os dias, de que falava Renan, um plebiscito praticado em torno das coisas que se amam.