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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

17.4.08

Escritos inúteis que nem eu sei se são antigos, mas que apetecem rescrever


Ontem, num grande salão de um alto dignitário do regime, fingindo que ali estava, compreendi que o problema não estava nos aparelhos e na boa gente que tem a ilusão de os servir. O problema está na circunstância de o Estado-Aparelho começar a perder comunhão com o Estado-Comunidade e de todos sofrermos com esse rebaixamento de fins e a consequente confusão de valores e inversão da hierarquia, com os pés na cabeça, a cabeça nos pés e o coração como simples máquina de batidelas e com o corpo todo deixando de ser suporte para a procura do infinito.
Para quê viver por ter de ser, para executar ordens anónimas de um colectivo anónimo ou servir um obedecer? Porque tempo de espera é tempo de esperança, é tempo de viajar pela distância, tempo de redescobrir quem sou, tempo de não temer quem sou.


Minha geração perdeu-se em crenças e descrença. E sem vozes que nos congregassem, sem termos raiva nem esperança, cobardes nos fomos perdendo nas sombras longas da invernia. Agora, os fáceis vencedores, em vingança vão crescendo, arreganhando seu desdém. E sem versos que nos despertem, eis-nos dispersos, minguando à sombra doentia das montanhas a que subimos no passado.


Minha geração perdeu-se na crença de só haver descrenças. Feitos folhas sem destino, fomos ao sabor do vento sem norte que nos desse rumo. Já não sabemos inventar mar nem madrugada nas horas mais amargas. Já não sabemos suster o peso do sonho, erguer as mãos ao sol, ou saudar o criador. Por isso, não resistimos à ventania que da rota segura nos desviou.

E há dias que passo a pensar em meu país antigo, em meu país perdido. E nas trovas vou procurando sinais de nevoeiro que nos livrem dos receios. Mas as novas desesperam. Apenas sou um português perdido no presente, sem esperanças no futuro. Que estas mãos cansadas já não sabem construir catedrais nem caravelas.


Quem traiu o sal das lágrimas de Portugal? Quem roubou o sonho ao meu povo universal? Quem fez do meu país ser aquilo que não quis? Há muitos desses dias antigos de futura saudade, quando as coisas simples da vida ainda tinham sentido e o todo acalentava cada parte. Os navios sabiam que em suas velas havia voos de pássaro. Que as cordas nos davam sonhos. Que os mastros saudavam abstractamente o peso do infinito.


Quando a esfera ainda tinha contornos de esperança. Quando havia o sonho de procurar um lugar onde, no próprio lugar da pátria. Porque o mar ainda nos unia. Porque o mar ainda era princípio de viagem para o outro lado do mar.


Importa, mais uma vez, chegar ao entusiasmo e ao amor só a pensar. Libertar-me dos braços abstractos da tenaz que me limita. Mesmo que não apeteçam poemas de poetas de génio, consagrados, porque, mais do que substantivos, precisamos de um predicado. Pode ser que voltemos a ser voz activa, capaz de convocar num só instante, todas as alegrias do passado. Poder ser que voltemos a ser linha recta que toque em Deus.