a Sobre o tempo que passa: Éramos mandados, somos hoje governados. Contra as ideias que tendem a apoucar o indivíduo e a engrandecer a sociedade

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

27.2.08

Éramos mandados, somos hoje governados. Contra as ideias que tendem a apoucar o indivíduo e a engrandecer a sociedade


Ouvi dizer que, ontem, em plena Assembleia da República, o chefe do grupo parlamentar do principal partido da oposição terá dito: é necessário que se organizem dois partidos, somente; um – mais ou menos conservador, e outro – mais ou menos avançado. Considerou também progressiva a tendência para a bipolarização, porque estamos cansados do regime dos pequenos partidos e desejosos do sistema das maiorias.


Já um desses intelectuais, vencidos da vida, continua a proclamar estupidamente que o país encerra um povo exausto de seiva moral, marcado pelo morbo gaulês da centralização. Defende que as leis se afiram pelos princípios eternos do bom e do justo, e não perguntarei se estão acordes ou não com a vontade de maiorias ignaras. Porque tão ilegítimo acha o direito divino da soberania régia, como o direito divino da soberania popular... Que a tirania de dez milhões, amotina-se contra a conversão do homem em molécula e as ideias que tendem a apoucar o indivíduo e a engrandecer a sociedade, temendo o republicanismo democrático que serve de prólogo ao cesarismo.


Um departamento de uma escola pública obrigou um professor a fechar dois jornais humorísticos, onde se satirizava a Igreja e alguns políticos, porque o conteúdo era "desprestigiante" para a escola. O Conselho de Departamento (…) deliberou, numa reunião, que estes meus projectos na blogosfera tinham que ser encerrados. Segundo argumentam, desprestigiam a minha própria imagem, a imagem do departamento e, acima de tudo, a imagem da universidade. Além disso, (…) dizem que eu faço lá coisas que não têm nada a ver com a minha profissão e que um docente universitário não pode ser escritor criativo nem humorista. Portanto, proibiram-me também de participar em eventos ligados ao humor.(...). O visado diz que não recorreu a outros órgãos da Universidade porque essa foi uma decisão tomada em família. Sou casado, a minha mulher não tem emprego, tenho um filho pequeno para criar e preciso do ordenado para pagar a dívida da casa, para pagar o carro e por aí fora.


Outro escritor decadente terá dito: Há em Portugal quatro partidos: o partido socialista, o social-democrata, o porteiro, e o comuna. Há ainda outros, mas anónimos, conhecidos apenas de algumas famílias. Os quatro partidos oficiais, com jornal e porta para a rua, vivem num perpétuo antagonismo, irreconciliáveis, latindo ardentemente uns contra os outros, de dentro dos seus artigos de fundo

Em certo blogue é anunciado o programa das Conferências do Largo da Praça, pretendendo ligar Portugal com o movimento moderno, procurando que se adquira a consciência dos factos que nos rodeiam na Europa, e agitar na opinião pública as grandes questões da filosofia e das ciências do século XXI. Segundo o jornal situacionista, O Projecto, os conferencistas não passam de meia dúzia de indivíduos desvairados pelo filosofismo dissoluto. Há dias começaram as conferências, com um discurso de Anacleto Pinto sobre O Espírito das Conferências. Ontem foram proibidas. Porque, conforme as palavras do despacho ministerial de António José da Cunha, nelas se expõem e procuram sustentar doutrinas e proposições que atacam os valores e as instituições políticas do Estado ofendendo clara e directamente as leis do país e o código fundamental da União Europeia.


Entre o senhor rei de então, e os senhores influentes de hoje, não há tão grande diferença: para o povo é sempre a mesma servidão. Éramos mandados, somos agora governados: os dois termos quase se equivalem (Antero de Quental).


Tudo o que aqui se relata aconteceu no ano de 1871, aqui. No primeiro parágrafo, está José Luciano de Castro. No segundo parágrafo, Alexandre Herculano. O terceiro tem a ver com a Universidade do Minho, mas aqui e agora. O quarto é Eça, também em 1871. No quinto, onde está Anacleto, leia-se Antero e o ministro podia ser Maria de Lurdes Rodrigues e a DREN, ou Santos Silva e as jornadas parlamentares da Guarda.
Estou assim porque participei activamente em espírito na manifestação de ontem dos professores, pelas ruas de Coimbra, e porque também tenho um blogue e já fui publicamente denunciado pelo que aqui escrevo em pleno Conselho Científico da minha escola ... pública. Não comento o major e os árbitros, nem portas contra o ministro agrícola. Apenas digo que em 1871, o governo não era de direita, mas o regime já estava cansado e ainda iria durar meio século, porque teve a hipótese de se entreter com a construção de um império colonial, aproveitando os vazios de poder que em África nos deixaram as grandes potências da Europa. Agora, apenas somos um pouco maiores do que o Kosovo e fiamo-nos na virgem... do Obama.
Por outras palavras, este é o país onde o ministro da cultura, ligado aos direitos humanos e à empresa do Gato Fedorento, deve ver, ouvir e ler, fazer um discurso de revolta contra esta opressão, ou assobiar para o lado, assumindo a vergonha do ávila. Juro que Fernando Pessoa resistiu aos comentários literários que lhe foram movidos em meados da década de trinta pelo político José dos Santos Cabral.