a Sobre o tempo que passa: Retalhos da gloriosa vida quotidiana do nosso rotativismo

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

18.11.07

Retalhos da gloriosa vida quotidiana do nosso rotativismo


Basta lermos "The Economist" ou o editorial do semanário "Sol" para percebermos a trama. O primeiro já qualifica Luís Filipe Menezes com o carimbo de "populist". O segundo acaba por concluir que Sócrates será reeleito, porque em Portugal todos os primeiros-ministros que se recandidataram foram sempre reeleitos. Por outras palavras, voltámos ao velho rotativismo da Convenção do Gramido, a que consagra a existência de um protector estrangeiro capaz de definir o nosso politicamente correcto, bem como ao modelo onde durante décadas e décadas nunca tivemos eleições livres perdidas pelos governamentais.


Em primeiro lugar, os governos que comandam a distribuição dos postos e das postas a partir da mesa do orçamento só não ficam com a melhor parte se forem burros ou não perceberem da arte. Porque:


Há entre el-rei e o povo
Por certo um acordo eterno:
Forma el-rei governo novo
Logo o povo é do governo
Por aquele acordo eterno
Que há entre el-rei e o povo.
Graças a esta harmonia
Que é realmente um mistério,
Havendo tantas facções,
O governo, o ministério
Ganha sempre as eleições
Por enorme maioria!
Havendo tantas facções,
É realmente um mistério!

(João de Deus)


Em segundo lugar, um qualquer marechal saldanha, ou um qualquer ministro de cabral, quando se sente à rasca com a emergência de uma qualquer patuleia, costuma dizer que, se esta tem sotaque nortenho, deve ser oriunda do miguelismo e, portanto, potencialmente, populista, radical, anti-europeísta e, quiçá, fascista.
Porque, encerrado o período de sangrentas lutas caseiras, entra em cena um regime centrista e nacionalizado, herdeiro conservador de um romantismo que fora revolucionário. Não passa de uma simples conciliação de sinais contrários, onde emerge, como consequência e motor, o cepticismo político que trata de conjugar o progresso em termos de melhoramentos materiais, mas onde também se agrava uma dominância banco-burocrática, assente no indiferentismo popular, bem como uma ilusão de crescimento dependente da engenharia financeira.


É neste ambiente de lassidão moral que se implanta um capitalismo dependente do empréstimo estrangeiro, gerando-se uma mentalidade oficial plutocrática marcada pelo utilitarismo. O melhoramento material parece ser a única alternativa a esta decadência. Ao menos a estrada de macadame, a malaposta, o tramway e o fontanário, esses sinais da política prática servem para justificar o abandono das utopias doutrinárias. E os patuleias, depois de uma passagem pelo republicanismo de orçamento ou lunático, volvem-se em progressistas à maneira de José Luciano.




Por outras palavras, quem se mete com o equilíbrio situacionista corre sempre o risco de perder o controlo sobre as adjectivações diabolizantes produzidas pelo politicamente correcto que quase sempre atinge o seu clímax quando a esquerda moderna se amanceba com a direita dos interesses.




Basta anotarmos algumas das campanhas negras mais recentes da nossa história democrática, onde, aliás, o crime sempre compensou. Não falo na invasão do Iraque e das falsidades da espionite que permitiram cimeiras e ascensões a lugares cimeiros. Prefiro recordar Sá Carneiro, acusado em plena televisão de adultério de Estado por um chefe de partido e um arcebispo, depois de os comunistas o vilipendiarem como caloteiro, na linha do que patrões da CIA tinham engendrado, apoiando preferencialmente o chefe dos socialistas, para desfazerem tacticamente o perigo de uma frente popular e da consequente unicidade antifascista.




Mas também já vi um devoto líder democrata-cristão ser ameaçado pelos líderes do PPE, recordando que ele tinha sido ministro de Salazar, para logo a seguir assistir à expulsão do seu delfim da mesma multinacional, acusado de desviacionismo populista e anti-europeísta, a fim de poderem inscrever o PSD no mecanismo.




Vejo que Menezes não caiu na esparrela de poder ser atirado pelo PPE para as raias do eurocepticismo, ao defender o referendo ao tratado. Reparo agora que também não estragou muito a paisagem face a decisões primordiais quanto a investimentos em obras públicas ou fusões bancárias. Ele sabe que os seguros podem morrer de velhos e prefere assumir a função portista de marcar o ritmo do "agenda setting", de acordo com os profissionalíssimos conselhos dos seus assessores de discurso e de imagem.


Durão vem agora confessar que foi enganado pelos espiões por ocasião da invasão do Iraque. E assim lava as mãos como Pilatos, porque graças a todos esses equívocos não foi ele o bombardeado e sempre há água benta que tira o mau cheiro a águas chocas. David Lynch vem ao Estoril apelar à meditação transcendental e a ASAE fecha a Ginjinha do Rossio, enquanto Luís Filipe de Menezes apoia a passagem de Almerindo Marques para as Estradas de Portugal, apesar de muitos andarem a promover a candidatura do gestor do regime a presidente da ASAE, dado que importaria encerrar o estabelecimento da República Portuguesa, SARL, depois do que temos ouvido de Catalina Pestana, Maria José Morgado, Alípio Ribeiro e Pinto Monteiro. Os tais que aparecem nos telejornais dissertando sobre as vírgulas do Código do Processo Penal, o combate ao terrorismo pela rectaguarda e o excesso de escutas da telemóveis não encostados a aparelhos de televisão.

Porque o Sporting levou três do Braga. O Porto levou dois do Estrela nos últimos cinco minutos do jogo. E o Benfica esqueceu-se do Celtic, graças às circunstâncias pouco loureiras do Boavista. Para que João Soares apoie Chávez, contra Juan Carlos e o Opus Dei dê razão a Bento XVI, no seu puxão de orelhas ao nosso esquema clerical. Vale-nos que a Judite já prendeu o bando do "aperta o papo", que a tasca da Badalhoca no Porto ainda vende pestiscos de dobrada e que ainda há restos de sol de Verão.

Acontece também que, lá para os lados da terra de Bandarra, o Gonçalo Annes, apareceram uns apitos douradinhos, apanhados em flagrante sem ser de litro, enquanto a Ordem dos Médicos se recusa a alterar o respectivo código deontológico por causa da nova lei da IVG. Por seu lado, Pedro Namora diz que não falou com a directora Madeira da Casa dita Pia, porque esta foi nomeada por um ministro que é amigo de dois anteriores ministros que o irritam. Já em Aguiar da Beira um cidadão morreu intoxicado por arsénio que circulava impune na água da rede pública.

A televisão, nos intervalos, vai transmitindo cenas do balneário da nossa selecção, com toda ela mobilizada por orações onde Scolari apela à virgem de Fátima. Talvez por isso é que os ditos se fiaram na mesma e não correram contra a Arménia, a tal terra esquisita donde nos veio o Charles Aznavour e o senhor Calouste Gulbenkian.