a Sobre o tempo que passa: O Estado já não somos nós...

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

20.9.07

O Estado já não somos nós...


Ontem e anteontem, em termos futebolísticos, perdemos quase tudo e não ganhámos em nada. Até José Mourinho foi despedido pelo russo que manda no Chelsea. O reitor dos reitores acusa o governo de estrangular as universidades e uma universitária de Coimbra parece ter sido degolada por ciúmes. Aquilino já repousa no Panteão, enquanto teorias da conspiração de há mais de um século tudo reduzem ao "simplex" maniqueísta de republicanos contra monárquicos, ou do bem contra o mal. O parlamento reabre e tenta fintar o óbvio: grande parte dos portugueses não é situacionista nem oposicionista, mas cada vez mais indiferentista, ainda sem exibir o gesto de revolta do Zé Povinho.


É assim o homem comum dos tempos de decadência. Fecha-se sobre si mesmo, faz cálculo utilitário e procura o máximo de prazer com um mínimo de dor. Diz que a política é para os políticos, descrevendo-a como uma guerrazinha dos homenzinhos que andam lá pelas alturas. E assume o abstencionismo activo. O problema é deles, dos que brincam ao chicote acenourado, porque "L'État c'est lui". O Estado é um inferno dos outros que nos pode queimar.


O novo Código do Processo Penal é deles, foram eles que o fizeram, são eles que agora gastam energias em discussões do sexo dos anjos. Eles, a corporação dos políticos instalados, eles a corporação dos operadores judiciários, os magistrados, os advogados, os polícias, os funcionários judiciais, os governantes, os deputados. A administração da justiça em nome do povo já não é do povo, mas das enferrujadas canalizações da nossa representação política, desses filhos de algo que estão instalados lá nas alturas. O Estado já não somos nós.


Entretanto, vai decorrendo o processo eleitoral polaco, a preparação do ambiente que pode ou não levar ao Tratado de Lisboa. A Europa também é deles. E o Tratado quase a mesma coisa que o nosso Código do Processo Penal. Ambos podem ser excelentes diplomas, mas estão cheios dos ácaros das negociações de alcatifa. Quando, afinal, o que pode estar em causa são as relações entre antigas superpotências e, sobretudo, o processo de renegociação do novo acordo comercial entre a União Europeia e Moscovo.


O povo português e o povo europeu assistem como simples audiência ao "share" que nos dá o "jogging" de José Sócrates em Washington, em Moscovo, ou em Pequim. Pedimos desculpa por esta interrupção, a grande maratona de Lisboa regressa depois do interregno. Dizem que José Mourinho pode ir para o Barcelona. Ninguém diz que ele pode vir a substituir Scolari. Quem meteu o golo ao Sporting foi o Ronaldo. A vida continua.