a Sobre o tempo que passa: Navegar é preciso quando, aqui e agora, se procura o paraíso

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

14.9.07

Navegar é preciso quando, aqui e agora, se procura o paraíso


Leio no "Público" de hoje: "temos um sistema que contabiliza o número de pessoas que lêem uma determinada notícia e atribui uma cor ao texto. Quando ninguém a lê é branca e quando atinge um determinado patamar é preta. No fim-de-semana, apesar de ter havido muito noticiário político, a única história preta foi a de Madeleine". As reflexões são de um repórter polaco e podem ler-se num jornal que, neste dia, nenhuma linha dedica à campanha eleitoral do país dito dos gémeos. Contudo, no âmbito das parangonas pretas, em Portugal, o caso Scolari tornou-se mais preto do que o caso Madi, enquanto a visita do Dalai Lama se reduziu à participação de um deputado do PCP na recepção oficial ao líder espiritual e apagou de todo a reunião de Bob Geldoff com José Sócrates.


Se aceitássemos, de forma acrítica, que, em política, só o que parece, ou aparece, é que é, poderíamos concluir, de forma simplista, que a nossa opinião pública, bem como a opinião crítica que se lhe associa, não quer ler questões da globalização, nada se interessa sobre o problema do futuro tratado europeu e olha com desdém para a disputa da liderança do PSD, enquanto já se esqueceu do problema casapiano e poucas preocupações manifesta quanto ao apito dourado. Sabe que Luís Filipe Vieira e Pinto da Costa interessam mais do que os "luizinhos" laranjas e trata de trancar as portas, janelas e quintal da sua casa e da sua privacidade, salvo se estiver no grupo dos 47 mil candidatos a professores que não tiveram vaga, dos 7 mil profissionais de saúde que não nos vão curar ou dos cerca 50 mil licenciados que não têm direito ao trabalho, porque não criámos suficiente riqueza para os tornarmos formais agentes produtivos.


Os tais planeadores que a todos despediram, em nome do intervencionismo estadual que criou, autorizou ou controlou sistemas públicos de educação ou de saúde, são exactamente os mesmos que fazem, agora, discursos de Pilatos neoliberais, ou discursos futuristas sobre o que é a modernidade. Foram e continuam a ser irresponsáveis, especialmente quando estão sentados nos cadeirões do poder e manejam documentos estratégicos de uma tecnocracia cinzenta, dessa sublimação de planeamentismo que nunca mais compreende que a maioria dos factores de poder que podem gerir já não é domesticamente nacional, mas simples navegações à vista, feitas gestões de dependências e de interdependências desta anarquia ordenada, já sem sementes de revolta pela subversão da justiça e da libertação individual.


Os cadeirões do poder que marcam o estadão a que chegámos são meros tigres de papel que pensam mandar, quando apenas são peças da máquina anónima de uma pilotagem automática, onde os pretensos homens do leme tanto não têm carta como querem saber da rota. Já não ousam dobrar cabos desconhecidos, nem gostam de navegar para a conquista da distância. Isto é, continuam a julgar que o porto seguro está no quintal da endogamia e não nesse prazer do navegar é preciso quando, aqui e agora, se procura o paraíso.


Por isso é que, para homenagear o Dalai Lama, tratei de ler os textos "zen" do meu mestre Agostinho da Silva, um dos poucos lusitanos que se elevou à categoria de português universal, quando se diluiu em todos os outros e se confundiu com os budistas, proclamando que o Quinto Império era o poder dos sem poder, do tal imperador do Espírito Santo, simbolizado pela coroação das crianças. Qualquer documento estratégico das tecnocracias cinzentas e planeamentistas nunca escreveria tal a preto, segundo do ritmo da política entendida como o que parece é.


Daí que Sócrates passe noites em branco por causa de um tratado onde terá feito tudo o que tecnocraticamente deve ser, mas que, agora, parece dependente de um acaso. Tal como os 50 mil, mais os 47 mil, mais os 7 mil deviam reclamar contra o Senhor Estado que lhes prometeu o que não podia cumprir. E não permitiu que lhes fosse dado um misto de aventura e pragmatismo, como sempre foi o humanismo dos sonhadores activos e da consequente educação para a mudança. Prefere ir injectando o nosso dinheirinho dos impostos em sucessivas massas falidas. Porque, parafraseando Almeida Garrett, sempre poderemos dizer que o mundo já não é o que era, nem vai voltar a ser o que foi, dado que, sobre aquilo que ele vai ser, sabe mais o Dalai Lama do que o ministro o Ministro Mariano Gago, que pode ter lume de uma razão dos novos marxistas, mas nunca recebeu a luz eterna dos velhos mestres da sabedoria.


Obrigado, Dalai Lama. Um sorriso vale mais do que mil discursos tecnocráticos.