a Sobre o tempo que passa: Votar sempre como deve ser na semente de sucesso que vai vencer

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

31.8.07

Votar sempre como deve ser na semente de sucesso que vai vencer


Quanto apetece ser como todos os outros, sem a pretensão de ser quem sonho. Ser apenas um, humanamente, entre os demais, na longa fila dos que apenas sobrevivem, sem a dor de pensar na própria vida. Ser igual ao que nunca são demais, e perdido na sonolência da multidão, esquecer-me de quem sou. Ser um cidadão qualquer, marcado pelo ganha-pão, cumprir o horário, ser bom funcionário e votar sempre como deve ser na semente de sucesso que vai vencer.

Ser obediente, sacrificado, competente e aspirar a um louvor cinzento pela vida que dediquei a quem não sei. Cumprir ordens sem pensar que posso pensar (para quê procurar o porquê do que existe para não ter porquês?). Sim, senhor mandante, senhor director-geral, vossa excelência manda, basta apenas despachar e cumprirei sem duvidar vossa omnipotência banal.

Para quê pensar o porquê do que não tem porquês? Para quê sofrer pelos meandros direitos do que torto tem que não parecer. Esta angústia da vida burocrática, dos corredores das demandas sem fim.

Vale a pena esperar, esperar pacientemente a hora de me poder aposentar. Depois, sim, oh que alegria! Poder, finalmente, cultivar as flores do meu quintal e, sentado no sofá, ler descansadamente os livros todos que deixei por ler, sem temer que me venham surpreender em flagrante de cultura marginal.

Apetecia deixar de ser o que pareço ser, fingir para os outros quem na verdade sou, sair desta fortaleza em que resisto.


Mas, de repente, pode romper de novo a alegria de estar vivo. Mesmo aqui, nesta falta de horizonte das vinte e tantas paredes, destas quatro assoalhadas, onde estou domiciliado. Mesmo aqui, neste lar de cimento armado, no labirinto das ruas deste bairro, traçado a compasso e esquadro, mesmo aqui, nesta rotina baça, em que dia a dia vou fenecendo, a correr contra o meu tempo.


Dê-me senhor notário uma escritura, um pedaço de papel azul, devidamente selado, qualquer título que me dê direito ao uso, fruto e abuso daquela terra de semeadura, onde quero implantar meu lar. Não sei quantos metros quadrados que me dêem espaço para vencer esta urbaníssima claustrofobia de só em fila poder passear.

Mesmo nesta cidade medonha, há sítios que apetecem sempre: pedras velhas, vielas tortuosas, casas, praças, cais, ruas que são aldeias (sobretudo o sol nas vidraças em tardes de verão). Não a cidade feita postal ilustrado, pedaço para turista ver, recortar, fotografar, levar... Sim à cidade viva que nos dá vida, a cidade que apetece passear e, peregrino, revisitar.

Não vou dizer mais não à cidade, especialmente a esta Lisboa branca com Tejo ao fundo, onde podemos passar sempre à outra banda e transformar cacilheiros em caravelas.

Em Lisboa também há gaivotas e brisa, barcos de proa sonhada e azulejos nas casas...