a Sobre o tempo que passa: Hino à glória de ter medo

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

30.8.07

Hino à glória de ter medo


Sei do abstracto bem do Estado e do preço que não tem a vida humana; sei máquinas automáticas que registam todos os passos do suspeito. Sei microfilmes, computadores, e sofisticadas torturas que o não são, sempre de acordo com os regulamentos.

Sei das regras todas, das leis, das circulares, das convenções. Sei prisões, direitos e garantias, códigos penais, processuais e as teorias todas do poder. Sei de cor os meandros do medo, notificações, contestações, concentrações. Sei sobretudo prisões sem culpa formada e legalíssimas justificações de tudo. Sei do medo e a repressão, sei tudo isto e não estou calado.

Sei e valia mais não saber, valia mais esquecer-me de quem sou e, renegando os princípios por que me querem prender, entregar-me às doces polícias do pensamento que sem proibir nos querem silenciar.

Valia mais censurar-me, arrepender-me, rasgar meus versos, não acreditar. Isto é, ter o prudente medo desse bom chefe de família que tem de ganhar a vida. Ter, em suma, a cobardia de não ser e parecer sempre do lado que convém.

Para quê defrontar o vento novo e arriscar causas perdidas, quando posso aplaudir o vencedor? Ser definitivamente da casta dos moderados, desses que tendo dito sim ao não, aparentando não dizer nada, podem, depois, muito convenientemente, demonstrar que não disseram o que calaram.
Enfim: sobreviver, deixar a política para os políticos e a pátria para os homens de sucesso.

PS: Agradeço ao meu amigo René Magritte a ajuda que me deu com "Le Chef d'Oeuvre". Sem palavras disse todas as palavras que eram precisas.