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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

11.7.07

Grão a grão, vai enchendo o papo, esta revolta da Maria da Fonte, sem que Sócrates perceba que se está a transformar em Costa Cabral


Leio a jornalada, nestes retalhos de um quotidiano, onde os ministros dão recados ao povo através de fugas de informação dos seus assessores de imprensa, depois de receberem pressões públicas comunicacionais de grupos de interesse que passaram a fazer pressão, como acontece com Gago, ministro, que agora diz estar disposto a alterar uma lei que já está em discussão na especialidade no parlamento, depois de ter sido aprovada na generalidade e depois de, como tal, já ter sido apresentada pelo governo, assim confirmando como o grupo parlamentar da maioria é uma simples correia de transmissão do partido que manda no governo, e que as chamadas leis são sempre negociáveis, para irem, de negociação em negociação, até à confusão final do nem carne nem peixe. Valia mais que o meu professor Vital Moreira lesse "The Federalist" e adoptasse uma via confederativa para a complexidade da universidade, onde o pluralismo estatutário não deveria proibir a unidade institucional.


Prefiro fugir da transcendência das estrelas e ir para o pequeno enlameado do quotidiano onde tenho de viajar com os pés. Porque, ontem passei o dia a corrigir testes escritos de alunos da bolonhesa, semestralizados, como ciência de chouriço e pastilha. Reparei como para a maioria dos alunos foi difícil responder a uma questão onde se fazia um relacionamento entre a abstracção de um conceito e elementos da realidade. Concluí que eles estão preparados para cantarolar receitas pré-fabricadas na sebenta de um livro único, como as respostas das ciências pretensamente exactas que saem nos jornais no dia seguinte a uma das provas dos exames nacionais. Não estão preparados para a criatividade, a investigação e o exercício do pensar mais do que baixinho.


Se seguisse o paradigma de um velho professor meu que chumbava em regime de indeferimento liminar noventa e cinco por cento dos que não estavam treinados para o efeito, faria o mesmo que nos tempos da pré-bolonhesa. Por mim, apenas considerei que a culpa era a minha não adaptação aos tempos que passam e decidi ceder aos ditames dos novos ritmos avaliadores, para que todos deslizem para o pagamento de propinas e para o aumento da receita pública pela quantidade. Assumi a cobardia dos novos amanhãs que reformam, mas não repetirei o erro no próximo ano lectivo. Que venham outros, mesmo que sejam uns desses assessores do senhor director pagos a recibo verde, ou um dos compadres de um qualquer outro reformador que facilite a vida à teologia do mercado que vai destruir uma universidade, onde partidocratas e burocratas pintados de professores brincam à gestão dita democrática, antes da chegada dos necessários gestores profissionais, avaliáveis pela sociedade civil, que dêem aos professores a urgente liberdade académica que o presente modelo crepuscular vai asfixiando.


Mas os sinais de degradação do quotidiano, especialmente na zona do micro-autoritarismo sub-estatal, continuam. Agora é a própria Igreja Católica, que, há dois mil anos sabe como fazer barganha com o poder político, a denunciar a crescente falta de liberdade prática e a chamar os bois pelos nomes. Por mim, a coisa foi mais ridícula: fui à inspecção com uma velha carripana de 1999 e a viatura foi reprovada, não por falha mecânica, mas porque a chapa de matrícula, de origem, tinha um 5 antes de 1999, quando no livrete estava o mês de Junho de 1999, que deveria corresponder ao número 6. O senhor inspector tem toda a razão. Pena que o vendedor a não tivesse. Pena que a circunstância tenha escapado a sucessivas inspecções.


Não vale a pena dialogar com essa peça da máquina e tentar dizer-lhe que a letra do regulamento deve ser interpretada de acordo com o espírito da lei e que um 5 em vez de um 6 não revela fraude de mercadorias importadas, nem prejudica a vigilância contra a sinistralidade, a luta contra a evasão fiscal ou a normalização europeia. A única coisa que posso dizer é que a firma em causa se chama Inspeauto e que os papéis da inspecção anterior vinham da concorrência, da Controleauto. Aliás, foi-me referido expressamente pelo senhor inspector que "há inspecções e inspecções...e que ninguém me poderia garantir que não fossem os tipos da revisão que mudaram a chapa".


Se algum dos meus leitores conhecer forma de chegar aos directores destes inspectores ou aos inpectores destes directores, que diga aos ditos para irem ao computador comprovar o que digo. Por isso, quase muitos começam a ceder àquele conselho que me deram: "vai a uma garagem privada e pede aos tipos para irem depois à inspecção... é mais barato, rápido e seguro".


É evidente que poderia telefonar para um desses meus amigos que ocupam a máquina do Estado nessa zona e pedir-lhes que alertassem os caçadores de chatices. Mas como também nunca os importunei com um pedido de limpeza de multas de estacionamento, resta-me denunciar publicamente estes pequenos sinais de despotismo, timbre do império otomano e das administrações coloniais, onde, grão a grão, vai enchendo o papo, esta revolta da Maria da Fonte, sem que Sócrates perceba que se está a transformar em Costa Cabral, até por culpa de um diligente funcionário da Inspeauto.
PS: A imagem que escolhi veio-me da Google quando pedi sultanato, otomano e colonial. Lá em cima outras são as perspectivas da recta guarda que paga impostos e taxas. Até ao dia oito de Agosto, tenho mesmo que mudar de chapa. Pinto um cinco em vez de um seis. Até lá o meu veículo tem o vermelho do "reprovado".
PS1 Agradeço ao delegente leitor de autoritário título curativo que me enviou o seguinte mail : Eu frequento, de vez em quando, o relato das suas amarguras, e condoo-me. Mas irrita-me ver chamar «jornalada» aos jornais, num texto, ainda por cima, com erros de ortografia (rectaguarda). Provavelmente, vou passar a condoer-me menos. Aceito a pega de cernelha, monopolizo a dor e confesso os erros de quem não usa corrector ortográfico. Reconheço que o homem é um animal de regras porque só o homem as pode não seguir. Porque o essencial das regras é procurar cumpri-las e o analista médico tem toda a razão e pode continuar a denunciar-me por "mail" ou na imprensa médica. Até pode descarregar todos os meus textos, como noutro dia fiz para programa de correcção automática, verificando que, além do que me denunciou, tenho centenas de traços vermelhos, uns por erro de tecla, outros por ignorância. Já o Platão dizia que quando eu faço uma recta num espaço vazio, eu posso ter uma ideia de recta, mesmo quando ela sai reta, isto é, torta. Aliás, até nem sei, por vezes, distinguir o responder "a" do responder "para", de acordo com a velha anedota do Guerra Junqueiro. Aceito o retro, menos na jornalada. Há quarenta anos que escrevo nos jornais e que vou gralhando. As gralhas passam, o escrevente segue, e a recta reta. De qualquer maneira, fica melhor na guarda o recto. Obrigado.