a Sobre o tempo que passa: Tenho a certeza que a justiça continua a ser uma deusa de olhos vendados

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

21.6.07

Tenho a certeza que a justiça continua a ser uma deusa de olhos vendados


Um qualquer cidadão terá apresentado uma qualquer queixa-crime contra outro qualquer cidadão e este, em resposta íntima, acaba de fazer um belo elogio do Estado de Direito que, a seguir transcrevo. Tenho a certeza que a justiça continua a ser uma deusa de olhos vendados cuja espada está ao serviço do todo e não se confunde com a do Leviathan, nem com o báculo que este tem na contramão e faz confundir um opositor com um pecador. O cidadão justamente queixoso é um dos máximos símbolos da democracia portuguesa. Tem o direito de defender os seus direitos e a sua imagem pelo recurso ao sistema de administração da justiça. Mas também vai ser, durante seis meses, o máximo símbolo das democracias europeias.

Nixon também era o máximo símbolo das democracias ocidentais e não consta que tenha sido ele a assaltar o edifício do Watergate. Mas por causa de uns dislates de uns pequenos agentes teve que abandonar o máximo poder mundial em plena Guerra (Fria). Parece que nos USA se gravavam todas as conversas do Presidente em plena Casa Branca. Parece que seríamos todos estúpidos se confundíssemos a árvore com a floresta. Só que uma só árvore, ou um só ramo de uma delas pode apodrecer toda a imagem da própria floresta:


Desta vez, ao contrário de 24 de Outubro de 2004 , não bateram à porta da minha velha casa, em Alcobaça, pelas 7:00, ainda o sol não tinha nascido, dois inspectores da Polícia Judiciária e um procurador-adjunto por causa da suspeita do gravíssimo crime de... desobediência simples (do qual fui absolvido depois em tribunal, veredicto confirmado pela Relação de Coimbra) - não fui acusado de qualquer violação de segredo de justiça. Não pensei que fosse o padeiro - aliás, se à hora do lobo oiço vozes no patim e o batente soa, nunca mais penso que seja o padeiro... Eu não abri a porta estremunhado, um olho aberto, outro fechado, nem divisei três vultos. Não responderam que eram da Polícia Judiciária. Não começaram por entrar - e só se percebe, acreditem, o que é alguém entrar em vossa casa sem pedir licença a primeira vez que se sofre essa humilhação sem poder reagir - e me mostraram o mandado da juíza (que, todavia, não os autorizava a apreender-me correspondência...).

...

Desta vez, não lhes pedi para vestir umas calças, já que não os queria atender em pijama. Não me perguntaram, em tom solene, quantas pessoas estavam em minha casa. Não os avisei que minha mulher ainda descansava no quarto, como quem lhes fazia notar que tivessem a decência de a respeitar.

Desta vez, não os levei ao escritório exíguo onde escrevo. Não lhes abri o computador, com a intenção de lhes mostrar a pasta onde guardo os meus escritos, para mo desligaram imediatamente, que "podia ter uma instrução automática para formatar o disco..." Não lhes indiquei as pastas de arquivo com etiqueta "Política" (de 1 a 7), folhas bem arquivadas pois era por causa de política que vinham buscar a casa onde vivo e que foi de meus avós. Não lhes mostrei os papéis, não me questionaram sobre a sua origem, não me confiscaram os apontamentos manuscritos que tinham contactos de jornalistas nem ignoraram ostensivamente uma folha com o contacto de um assessor de tribunal (a quem tinha pedido legitimamente o link de uma página da internet de uma dado acórdão já público).

Desta vez, os meus dois filhos não apareceram assustados na sala da minha pobre casa, sem que eu lhes pudesse explicar quem eram aquelas pessoas. Só consegui fazê-lo passados dois dias - perante o eco duro da pergunta consecutiva do mais novo, que repetia a cada explicação minha: "mas... pai: tu fizeste algum crime?..." Não é fácil sossegar os olhos francos de uma criança que vê nos polícias - as crianças não sabem o que são procuradores - os homens que prendem os "maus", que o pai não fez crime algum e que a família tinha sido atingida devido a motivos justos e ao serviço cívico da comunidade, com a preocupação fundamental de defesa das crianças da Casa Pia vítimas comprovadas de abusos sexuais. Se a polícia te buscou, algum defeito te achou... As crianças não conhecem o que é a violência e a desvergonha do sistema. Não obstante, devem ter sentido que sofreram alguma violência na sua intimidade porque a minha filha sentiu-se mal na escola no dia seguinte e telefonaram imediatamente a minha mulher para a levar para casa.

Desta vez, não lhes pedi para me ir arranjar que daqui a pouco tinha aulas em Santarém, obtendo a resposta, esclarecedora para a desnecessidade de terem acordado a minha família pelas 7:00 quando o alvo (eu) só saía de casa às 9:00: "o sôtor entra às 10 horas, não é?..." - entrava... Um polícia não surgiu com o meu telemóvel na mão que, depois, não confiscaram - perguntei se era escutado, riram-se...

Desta vez, a minha mulher não surgiu na sala, onde, mesmo assim, apresentou um "bom dia" seco, enquanto se dirigia às crianças para que se arranjassem para a escola. Eu não soube depois que lhe tinham revistado o carro dela sem mandado, já com os filhos lá dentro, quando ela se aprestava para seguir para o trabalho.

Desta vez, na minha curta sala, onde o retrato sóbrio dos meus avós reclamava outro respeito - em vez da boca de um agente para outro "em princípio, aqui não chove..." - entretanto mais apinhada com mais dois inspectores que se tinham reunido aos outros e ao procurador, ninguém me ajudou a redigir o requerimento a pedir cópia dos ficheiros académicos que dois dias depois... indeferiu - só me entregaram a tese de doutoramento (de que lhes expliquei não ter outra cópia) em CD sete meses mais tarde. Não me levaram o computador para só mo devolverem largos meses depois - o programa de tradução Babylon é que nunca mais funcionou. Eu não fui comprar um computador nesse dia - por imprudência, ainda nem sequer encomendei o próximo... Não tive de dar entrevistas para tornar mais complicado abaterem-me sem consequência.

Desta vez, não soube que tinham ido outros dois inspectores à mesma hora (7 horas em ponto, ainda de noite, nesse 27 de Outubro de 2004) a casa de minha mãe, a dois quilómetros do sítio onde eu, casado e com dois filhos, vivo - aliás já não vivia em casa de minha mãe desde que me casei em 1993. Que tocaram à campainha de uma mulher, de 78 anos e paciente cardíaca, mas "recta como o sol" - como dela dizia o meu avô Balbino -, e de uma prima ainda mais idosa, para lhe buscar a casa, com mandado autorizado por uma juíza de instrução - a quem, além de outro, prometo escrever, se cá estiver, no dia em que minha mãe nos deixar - por causa do gravíssimo crime de desobediência simples do filho... A minha mãe não perguntou aos agentes o motivo da busca, tendo acrescentado que, porém, não deveria ser por causa de corrupção ou droga, tendo os polícias, envergonhados, explicado que era "por causa de umas coisas que o seu filho escreveu"... Depois de uma busca pela casa, telefonaram para alguém - provavelmente o procurador que estava em minha casa e dirigia a busca - e levaram um computador velho de 11 anos, um IBM 433 DX, que ela tinha comprado para os filhos antes de eu me casar e que mantinha lá com o fito que os netos nele se entretivessem, o que faziam muito raramente. A minha mãe que no tempo da ditadura teve, porém, gentileza menor: a polícia agora, em 2004, tinha ido pessoalmente revistar-lhe a casa "por causa de umas coisas que o seu filho escreveu" em vez da maçada da notificação, em 1973, para comparecer na GNR junto ao Governo Civil de Leiria devido a ter ousado pôr um ministro em tribunal por este ter sancionado um concurso em que havia sido preterida, se julgava com direito e veio a vencer após recurso.

Desta vez, não me comovi com o texto que minha irmã, melhor do que eu, gritou em 16 de Novembro de 2004 sobre a violência que foi provocada à nossa mãe "por causa de umas coisas que o seu filho escreveu". Um homem não chora.

Desta vez, não consta que tenha sido instaurado o inquérito para demonstrar neutralidade processual e equidistância face ao Horror, para compensar a sistémica vozearia orquestrada queixosa de alegado desfavor.

Desta vez, minha mãe não apareceu em casa a chorar por causa de um interrogatório manhoso - já não bastava a busca!! - relacionado com a apreensão que lhe fizeram tal computador, por funcionário judicial indigitado para o trabalho - "minha-senhora-o-seu-filho-disse-nos-que-o-computador-era-dele..." - "se-o-meu-filho-disse..." - "assine-aqui-por-favor..." Pensava eu que ela tinha ido ao tribunal por causa de uma tentativa de roubo que lhe foi feita por uma mulher, toxicodependente, com uma faca, em que sugeriram que desistisse (minha mãe queria até perdoar à mulher...) e, afinal, era para se livrarem da embrulhada da apreensão do computador de que é proprietária que lhe devolveram nessa altura - o que é, no fim de contas, uma simples tentativa de roubo com faca a uma senhora com 78 anos se comparada com a gravidade de uma desobediência simples do filho?...

Desta vez, não fui procurar alguém, com um carregador Nokia no bolso, à cautela por causa de alguma eventualidade - e só depois me advertiram que aí não deixam usar telemóvel -, com o propósito de obter uma explicação e a esperança de não o encontrar.

Desta vez, não abriram o meu computador sem a minha presença ou do meu advogado, aliás nem reparei em qualquer selo quando por lá o encontrei depois. Um computador com a minha conta bancária e de minha mulher, cartões de crédito, declarações fiscais, passwords, registo de tráfego - além de artigos, trabalhos, lições, exames e notas meus, fotografias da família, escritos de minha mulher, desenhos e jogos das crianças, etc.. Nem vi escarrapachados nos apensos detalhados do processo em cinco volumes grossos, impressos os meus mails, os tais que não estavam autorizados a apreender, e os meus recados do Outlook do tipo da gravidade de mensagens criptológicas como "comprar pneus para o carro".

Desta vez, não fui, ainda, a julgamento - mas irei, que não me perdoam a verdade (factos, factos, factos)... - e, portanto, não senti em quem julgava a cólera devida ao grande criminoso que eu era, nem me mandaram calar por ter arriscado a citação do subversivo Padre António Vieira ("se servistes a Pátria..."), nem impedem o meu combativo advogado, Dr. José Maria Martins, de me questionar directamente nem de me fazer certas perguntas inconvenientes, embora no interrogatório me possam exigir que descruze as pernas onde tenha assente algum bloco para escrever. Respeitinho!