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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

18.6.07

Neste mundo de homens lúcidos, prefiro manter a lucidez de me saber ingénuo...


Últimos dias da Primavera, antes de subirmos todos ao promontório dos séculos, ao presidirmos, durante seis meses, à União Europeia, através de José Sócrates, repetindo anteriores momentos dessa liturgia do poder dos poderes, já desempenhada por Aníbal Cavaco Silva e António Guterres, ao serviço de uma pátria que já contou com Afonso Costa na Sociedade das Nações e tem hoje Durão Barroso em Bruxelas, enquanto, nas globalices, se destacam Guterres, nos refugiados, Figo em Milão, Mourinho em Londres e Sampaio, na luta contra tuberculose. D. Afonso Henriques, encerrado na pedra tumular de Santa Cruz, por despacho da ministra Isabel, lá repetirá o camoniano grito da ditosa pátria que tais filhos tem.

Só que estas luzes da glória, bem acompanhadas pela transmissão integral dos medalhamentos e penduricalhos do dez de Junho, que ontem atravessou a eternidade das ondas hertzianas, com os golfinhos do Sado ao fundo, apenas cortados pelos sorrisos bate-palmas de Cavaco, Gama, Sócrates, Noronha do Nascimento e Rui Moura Ramos, têm as suas sombras, bem expressas pelo lodaçal que emerge nos meandros das discussões policiescas, futeboleiras e negocistas, onde se misturam as dúvidas da rede pedófila, dos apitos dourados e da pequena corrupção.

Basta passarmos os olhos pelos comentários, maioritariamente anónimos e pseudónimos, que ocupam os blogues judiciários, policiais e advocatícios, onde pseudo-representates de sociedades secretas e discretas, partidos, polícias, magistrados, advogados e consultadorias de obras públicas distribuem inconfidências e teorias da conspiração, segundo um ritmo de loucura crescente. Basta lermos esta entrevista, ou entendermos esta notícia, com o comentário da visada, em directo.


Apenas observo que é cada vez mais ténue a fronteira que separa a liberdade de expressão de pensamento das trevas da mais pura irracionalidade, bastando que um dos muitos milhares de "dossiers" explosivos entre no domínio da investigação jornalística e passe para as primeiras páginas de um diário ou de um semanário de expansão nacional, com a cobertura de um sistema de patrões privados da comunicação social. Por outras palavras, o gigante do estadão, feito de muito barro moldado com restos de lodaçal, tem muitos dos seus pés dependentes de uma denúncia fundamentada.

A velha técnica de navegação política, onde a demagogia populista do poder institucionalizado ainda conseguia ser domada pelos grandes engenheiros sociais do "agenda setting", corre o risco de escorregar numa simples casca de banana e atirar a nau do Estado para o "tabu" ou para o "pantanal", com consequentes fugas de primeiros-ministros, ou de ministros, para outros lugares ao sol.

Por mim, neste mundo de homens lúcidos, prefiro manter a lucidez de me saber ingénuo, isto é, de manter a velha hierarquia de valores, segundo a qual os cães ladram, mas a caravana passa. Os maquiavéis podem ter razão no curto prazo das cabalas, mas perdem-na a médio e a longo prazos, quando o furor das cabalas arrefecer e a protecção dos amigalhaços esmorecer. Isto é, os grandes senhores do neofeudalismo podem episodicamente ascender a donos do poder dos pequenos sistemas, enquanto durarem algumas conjunturas conspiratórias, mas não tardará que a poeira assente, que o lodaçal se torne ressequido e que a política se liberte das teias antipolíticas que a condicionam.

O diploma de licenciatura do senhor primeiro-ministro, os interesses imobiliários dos patos bravos, as golpadas de assalto ao PS e ao PSD, ou a confusão que pretendem lançar os corruptos e pedófilos, que se tentam livrar da mão longa dos que têm sede de justiça, são simples árvores de uma bem maior floresta. O tempo há-de lavar muitas destas confusões de narizes ou figuras de cera e a verdade há-de acabar por vir à tona da água choca que a todos nos vai sujando.

É evidente que, nestas encruzilhadas, é difícil que um qualquer pigmeu possa subir para a cabeça do gigante institucional e ver mais longe a simplicidade do bem comum, segundo a técnica do ovo de Colombo. Mas eu acredito que, em tais momentos, importa que cada um possa continuar a viver como pensa, sem pensar muito como depois irá viver, mesmo que tenha de submeter-se para sobreviver, para, depois, poder continuar a lutar para viver.

Nestas alturas, vale a pena ter autonomia pessoal e recordar a clássica ciência dos actos do homem como indíviduo, a que os gregos chamaram ética, e a que qualquer um, desde que tenha e mantenha regras pessoais, pode aceder, se se considerar o centro do mundo e espremer, gota a gota, os restos de escravo que lhe tentam impingir. Basta que mantenha a revolta que dá liberdade ao homem.

Os sistemas de alienação que nos condicionam podem parecer mais fortes e convidam à desistência, especialmente quando nos lançam na solidão e nos ameaçam com o pelourinho, pelo habitual cerco dos bufos, os telefonemas anónimos, os comentários persecutórios e o habitual desfile dos traidores e dos cobardes. É então que se impõe a coragem de ser minoria, a tal semente da resistência com que poderemos semear a liberdade.

Por mim, que também sofro com a mentira dos pequenos bufos e dos pequenos chefes, assentes em injustos privilégios com que se vão banqueteando, apenas repito que me submeterei para sobreviver, alimentando os filhos e pagando impostos, mas que nunca desistirei de lutar para continuar a viver como penso, mesmo que seja no desejado exílio, que tarda a poder procurar. As cadelas, os cães e os cachorros que ladrem, o norte dos meus princípios há-de furar o bloqueio. Mesmo que não seja comigo, prestes a continuar em Valbom dos Gaviões. A ideia de instituição que sirvo é mais ampla do que esse misto de cadeia e hospital psiquiátrico que mantém o nome da instituição que vossas excelências assaltaram.

Como dizia mestre Herculano, ao definir o essencial de um liberal: há uma cousa em que supponho que ate os meus mais entranhaveis inimigos me fazem justiça; e é que não costumo calar nem attenuar as proprias opiniões onde e quando, por dever moral ou juridico, tenho de manifestá-las...