a Sobre o tempo que passa: A sociedade aberta e o absolutismo inquisitorial das mentalidades fechadas

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

23.5.07

A sociedade aberta e o absolutismo inquisitorial das mentalidades fechadas




Confesso nunca ter sido um dilecto admirador de Diogo Freitas do Amaral. Mas, no
day after à respectiva saída de funções docentes no ensino público, dado que vai continuar a dar aulas no sistema concordatário, não posso deixar de o saudar e de louvar a respectiva luta pela regionalização. Registo também as ilustres presenças no auditório, para telejornal filmar.

Emocionou-me particularmente a presença do seu antecessor na presidência de um certo partido, que, sem contar as peripécias relacionais com o dito e as respectivas
viúvas, declarou, de forma eloquente: não dou notas, mas saliento a última mensagem importante que deixou e que completa o seu legado de professor. Já José Sócrates lembrou após a última aula de Freitas que criou com ele uma cumplicidade especial com o livro ‘Sociedade Aberta’, do filósofo Karl Popper.

Por isso, prefiro salientar as declarações do constitucionalista Jorge Miranda ao DN, sobre as consequências pouco popperianas registadas no universo kafkiano de importantes segmentos do actual aparelho subestatal: "houve um delator, o que é uma coisa profundamente triste", "o princípio constitucional da liberdade de expressão não pode ser posto em causa dentro da administração pública". E, acrescenta, "se houve injúria ou difamação, a questão tem de ser resolvida em tribunal e nunca por via administrativa". Chega ao ponto de dizer que "quem deveria ser demitido era a directora a regional".


Por cá, com mais um fadista a candidatar-se a Lisboa e com fundamentais reportagens televisivas dos almoços de Costa e Negrão, com ilustres comensais e notáveis, neste regime, onde os mandatários servem para disfarçar a pobreza dos que se candidatam ao formal mando, eu tivesse ido peregrinar um texto que emiti em 8 de Novembro de 1989, titulado
A Sociedade Aberta numa Estante Fechada:

Karl Raimund Popper, hoje com cerca de noventa anos, constitui, sem dúvida, um dos principais patriarcas intelectuais deste nosso tempo ocidental pós-marxista. Contudo, a respectiva obra, desde a
Logik der Forschung, publicada em Viena, em 1935, só há poucos anos é que transbordou do universo cultural anglo-saxónico, passando também a marcar os países latinos, principalmente depois das traduções francesas da sua principal bibliografia.

Também em Portugal o popperismo chegou em força, na década de oitenta, influenciando, inevitavelmente, o nosso insípido movimento de doutrinas políticas, com destaque para a aproximação liberal de Lucas Pires, para as descobertas intelectuais do Clube da Esquerda Liberal, de João Carlos Espada, ancorado no soarismo, a Pacheco Pereira, um dos intelectuais orgânicos do cavaquismo.


Apesar de tanto atraso, Popper também tem sido um dos semeadores da nossa tímida liberalização e, embora poucos o tenham introspectivado, muitos consideram-no como um elemento da moda, uma espécie de sinal exterior de intelectualidade, que se utiliza para desgarradas citações.


Acontece que noutro dia, ao visitar a biblioteca do antigo serviço público da propaganda e da censura, deparei com a primeira edição da fundamental obra do filósofo:
The Open Society and its Ennemies, publicada em Londres no ano de viragem de 1945. Uma obra que apesar de uma razoável edição brasileira, ainda não foi, infelizmente publicada em Portugal.

O exemplar da
Sociedade Aberta, apesar de, na referida biblioteca, ficar à mão de semear, estava coberto por poeira com algumas décadas. Arrumado, catalogado e indexado, o livro em causa jaz numa estante fechada. Se furou o bloqueio do autoritarismo português naquele pós-guerra, se não foi retirado da possibilidade de consulta, ficou, assim, por inércia, incomunicável, à espera que outros ventos da história o viessem libertar da poeira do esquecimento.

Na verdade, Portugal é um pouco como este acaso. Deixamos entrar a semente da sociedade aberta, mas preferimos encaderná-la, asfixiando-a numa redoma.
Se somos lestos à adaptar epidermicamente novas ideias, sobretudo quando as mesmas assumem a agressividade da moda, depois, não as adoptamos em profundidade, como elemento fecundante das nossas circunstâncias.

Deixamos as ideias originais nas estantes da erudição e apenas as utilizamos indirectamente através de dicionários de citações. Não as deixamos crescer por dentro de nós, dialecticamente.
Que o digam os ventos da sociedade aberta que por todo o mundo circulam!

Se estivermos atentos aos discursos políticos do poder e de algumas oposições, poderemos concluir que todos estão irmanados na mesma doença maniqueísta, que continua a considerar verdade aquilo que é contrário ao erro e erro aquilo que é contrário à verdade, numa concordância tácita com o modelo do absolutismo inquisitorial.