a Sobre o tempo que passa: Polícias de ideias, nunca mais!

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

19.4.07

Polícias de ideias, nunca mais!

De vez em quando, o telefone toca e lá respondemos aos jornalistas que nos pedem cooperação. os registos ficam. No DN "Há um fulgor organizativo na extrema-direita portuguesa", mas este fenómeno não é sinónimo de crescimento. Até porque "em Portugal não há condições, de maneira nenhuma, para uma explosão" desta ideologia. A convicção é do politólogo JAM, que desvaloriza a projecção que o PNR (Partido Nacional Renovador) tem conseguido nas últimas semanas, agora por força do encontro de extrema-direita agendado para o próximo sábado.

JAM lembra que não é inédito um encontro deste género, e aponta para outra situação. "O que se tem notado claramente, nos últimos dois ou três anos, é a integração dos movimentos portugueses em movimentos congéneres europeus. Esta integração é uma novidade", sublinha o politólogo. Que aponta também um outro dado que contribui para esse "maior fulgor" em termos de organização - a blogosfera, transformada numa ferramenta privilegiada de comunicação. JAM sublinha, no entanto, que a questão é sobretudo organizacional . Não significando um maior impacto desta ideologia - que "não tem condições" para se impor em Portugal. Manuel Villaverde Cabral, sociólogo, diz que a extrema-direita portuguesa "tem pouca expressão estatística" - tão pouca que "temos concerteza mais extrema-direita do que pensamos". Um cenário de difícil contabilização, até porque muitas vezes não se trata de uma "ideologia articulada". Neste capítulo, Adelino Maltês faz um outro reparo, referindo que em Portugal há muitas vezes "uma certa facilidade nos termos", colocando-se sob o epíteto de extrema-direita situações e ideologias muito diferenciadas.

No JN
é o caso UnI. Porque os efeitos na popularidade de Sócrates já são óbvios na quebra nas sondagens, segundo JAM, por causa desta "mossa no estado de graça" do primeiro-ministro, que será esquecido em poucos meses, diz. Para este catedrático, "discute-se o canudo, em vez do fundo da questão" a ligação entre "a partidocracia, os patos bravos e as universidades privadas". "Uma confusão da pior espécie que afecta todos os partidos. Todos têm estes cogumelos e a UnI não é diferente de outras", sublinha. JAM atribui o caso a um "fulgor juvenil" de Sócrates, com um senão "Se faltou à verdade e cometeu graves erros de confiança pública, o caso é diferente".

Porque ontem e hoje já falei em demasia (também estive na TSF e na SIC em directo), nada melhor do que silenciar, mas sempre acrescento que esta súbita obsessão da comunicação social sobre estas matérias está a gastar-se pelo mau uso e pode prostituir-se pelo abuso. Porque as ideias combatem-se com as ideias e nada há no actual ordenamento jurídico que impeça um fascista de se assumir como fascista, se a maioria dos defensores portugueses da coisa não pertencessse à categoria do fascista cobarde.

Segundo, porque apenas estamos a assistir à tradução em calão de movimentos exógenos, como consequência da própria integração europeia, invocando-se nacionalismos estrangeirados, contrários à ecologia da pátria portuguesa e até ao próprio ideário do autoritarismo salazarista, que proibiu os nacionais-sindicalistas e mandou a PIDE em 1945 caçar os nazis que aqui se encontravam exilados. Salazar nunca perdoou o que eles fizeram ao seu companheiro de ideias austríaco, Dolfuss.

Não podemos tratar, como questão ideológica, um simples caso de polícia e eventuais crimes de uso de arma ilegal ou de discriminação racial. A polícia deste Estado de Direito deve continuar a tradição que levou Otelo à prisão, não por ele ser esquerdista, mas por associação criminosa, de que foi amnistiado, com um juiz que era camarada ideológico dele a cumprir o seu dever. Aliás, mesmo hoje, pode haver um juiz de convicções fascistas que persiga criminosos, não por eles serem fascistas, mas por serem criminosos. A ETA em Espanha é perseguida, não por ser socialista revolucionária, ou independentista, mas por ser terrorista.

Já não está em vigor o conceito sovietista de contra-revolucionário, com direito a ingresso no Gulag, ou o conceito hitleriano de Gegenreich, com bilhete para o exílio ou para o campo de concentração. A sociedade pluralista e aberta do actual Estado de Direito assenta em valores que têm como adversários a intolerância, o fanatismo e a ignorância, mas nem por isso pode proibir ideias que defendam a intolerância, o fanatismo e a ignorância.

Porque houve ilustres filósofos e pensadores adeptos do totalitarismo no século XX e seria estúpido passá-los pelo silêncio. Porque a sociedade demoliberal costuma reciclar os seus inimigos. Os do século XIX, dos socialistas ao clericalismo, passaram a sociais-democratas e a democratas-cristãos, e trataram de ser os principais gestores do modelo depois de 1945. Para, nos finais do século XX, antigos comunistas se converterem ao pluralismo (veja-se o PDS italiano e os nossos ex-PCP e ex-MRPP), ou antigos neofascistas passarem a pós-fascistas (veja-se o caso de Fini e de analogias lusitanas do mesmo teor) , ambos como ilustres ministros de governos do pluralismo democrático na Europa Ocidental.

Seria estúpido que caíssemos nas armadilhas de certos caça-fascistas, para quem um extrema-direita até pode ser um conservador maçon como Churchill, o tal que liquidou o nazi-fascismo, ou um integrista teológico como Karol, depois João Paulo II, que derrubou os muros. Os segredos da liberdade têm que ser geridos pelos liberdadeiros e não pelos herdeiros da Inquisição ou dos moscas do Intendente.