a Sobre o tempo que passa: Contra o absolutismo, a ignorância e o provincianismo, marchar, marchar!

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

15.4.07

Contra o absolutismo, a ignorância e o provincianismo, marchar, marchar!

Domingo, quando espreito os registos da atarefada semana que passei, com intervenções em dois júris, organização de uma conferência e as habituais reuniões dos doutíssimos conselhos... Espero que, na próxima, me deixem dedicar aos alunos. Reparo também que muitos me pediram comentários sobre o caso UnI, a que chamaram de Sócrates, do Rádio Clube Português ao jornal Correio da Manhã, e que o semanário "O Diabo" trouxe um comentário meu relacionado com o tema. Noto também que um jornal de estudantes me entrevistou e que outro recordou a entrevista que dei sobre o tema, fazendo avisos sobre a crise em gritos de parto que por aí vai.

É evidente que quando faço este parcial balanço da semana, não estou a adubar a vaidadezinha, mas apenas a tentar abrir um pouco daquilo que, às vezes, se desvaloriza, na prestação de serviços à comunidade por parte daqueles professores que não dedicam o seu tempo extra-aulas a empresas de consultadoria ou a acumulações, até porque, todos os dias, não desisto da investigação e da publicitação da mesma, como se pode confirmar nos registos de entrada dos "sítios" onde divulgo meu serviço de funcionário da comunidade.

Por isso, não quero deixar de saudar a bela conferência que, sobre a história da administração financeira do Estado, Guilherme de Oliveira Martins
proferiu, na minha escola, no âmbito da disciplina de História da Administração Pública, onde, pela primeira vez, sou regente. O meu colega, amigo e companheiro de geração foi brilhante e cativante e obriga-me a recordar que começámos a nossa vida profissional como funcionários públicos no mesmo local, juntamente com outro assistente à mesma conferência, o António Rebelo de Sousa, quando a luta contra o defict até obrigava os três, no imediato pós-PREC, a partilhar a mesma secretária-móvel, que era de ferro e tudo.

Acrescento até que quem me meteu na vida de professor universitário foi o Guilherme, porque me trouxe os papéis do concurso público para assistente da Faculdade de Direito de Lisboa e me obrigou a preenchê-los. Passados alguns anos, estávamos todos ao serviço dos mesmos valores. Os dois sociais-democratas de sempre, autores do belo livro de confissões ideológicas, "A Democracia Incompleta" e eu, sempre heterodoxo, tão longe do ex-PSD, onde eles, ontem, militavam, quanto do actual PS, onde eles, hoje, militam, ou com quem cooperam.

Foi assim, com muitas saudades de futuro, que notei como a universidade pública, às vezes, não sabe mobilizar para o seu seio valores que se dispersam ao serviço do bem público. Até sorrio com a recente manobra de campanha que, agora, denuncia o José Pacheco Pereira, clamando que ele não pode intitular-se historiador, porque, para tanto, não está universitariamente titulado, quando, na prática, produziu, em qualidade e em qualidade, mais do que faculdades inteiras especialistas em títulos. O Alexandre Herculano que nunca foi titulado em coisa nenhuma e recusou ser lente convidado do Curso Superior de Letras deve dar voltas no túmulo...

Por isso, noto os novos meandros das trapalhadas socrateiras, com as televisões do fim de semana a irem roubar investigações à blogosfera, sem citarem aquelas fontes que até são assinadas com nome próprio, numa violação substancial de direitos de autor, bem mais grave do que as práticas que denunciam ao actual Primeiro-Ministro. Gera-se assim um ambiente confusionista que é propício a que um ministro da agricultura se ufane com a circunstância de dizer que deve receber uma medalha de luta contra o deficit só porque despediu todos os funcionários do seu ministério que estavam dedicados a matérias museológicas, isto é, dois! Sic: dois.

O argumento usado foi, no mínimo, ridículo: o ministério da agricultura não tem vocação para a matéria (sic). Como se tivesse sido o ministério da cultura a ser pioneiro em tal processo. Como se, no Instituto Superior de Agronomia, nunca tivesse existido um Eugénio Castro Caldas, por acaso, o primeiro director do gabinete de planeamento do mesmo ministério, quando a Universidade Técnica de Lisboa ainda era fiel ao seu plano fundacional. O tal ministro que aparece, agora, tecnocratizado por uma técnica que quer esquecer a sabedoria. Como se não tivesse sido o ministro Joaquim Lourenço, em 1979, a ser pioneiro no lançamento das bases de um núcleo museológico. Como se os dois modestos funcionários gastassem mais do que as horas extraordinárias que, muito justamente, devem ser pagas aos motoristas dos gabinetes governamentais do sector para irem à província fazer discursos destes...

Falo com conhecimento de causa. O agrónomo e jurista Lourenço, ministro do pintasilguismo eanista, na secção sousafranquista do mesmo, tinha como adjuntos dois jovens assistentes universitários, hoje catedráticos da universidade pública. Um era eu, outro, o José Artur Duarte Nogueira, da Faculdade de Direito de Lisboa, os preparadores do despacho de criação da comissão instaladora de um museu agrícola, à semelhança do que acontece na Europa comunitária, até para garantir a realização de filmes, conservando aldeias perdidas. Qualquer um de nós se inspirou em actos iniciados pelo anterior ministro socialista António Barreto, que teve desviar, com alguma ilegalidade, verbas do seu gabinete, a fim podermos comprar velhos carros de bois para o Museu Etnológico que não era do ministério que tutelava...

Felizmente que Guilherme de Oliveira Martins, quando foi governante nos sectores da educação e das finanças, lançou bases de identidade de dois ministérios, hoje exemplares no cuidado extremo que transparece no culto das raízes de futuro, tanto na pesquisa dos nomes históricos dados às escolas, como nas biografias das personalidades ministeriais. Curiosamente, o ministério da agricultura, que foi pioneiro nesse processo, fica satisfeito com a limpeza das memórias dos aparelhos do poder e da própria maioria sociológica do povo, pensando que, sem respeito pelo património cultural, é o camartelo da lógica do tractor e do betão que nos vai modernizar, como desde sempre praticaram os colonizadores quando queriam escravizar os povos que consideravam indígenas...

Não posso, contudo, deixar de saudar os que permitiram a mais recente fuga ao segredo de justiça, revelando as conversas de um autarca do Norte com governantes de Barroso, onde se revelam os bastidores do "nacional-porreirismo". Porque se confirma, por escrito, o que, durante anos e anos, só alguns poderiam detectar em puridade, nas chamadas conversas ditas de Estado. A conclusão foi expressa por um deles quando, referindo-se a certos políticos em miniatura, disse que eles apenas existiam no âmbito das terminações.

Mas a frase que melhor exprime a nossa classe política terá sido proferida por um ex-ministro, quando dizia ao ilustre cacique, fumador de charuto, que temos de ser uns para os outros. Isto é, o ilustre autarca e futebolítico, ao meter suas cunhas em vernáculo, em nenhum caso, ousou pedir favorecimentos pessoais, mas apenas facilidades para a respectiva região, autarquia ou amigalhaços, assim confirmando como foi esmagadoramente sufragado pelo respectivo povo.

Pena é que continue esta cultura anti-Estado de Direito, do princeps a legibus solutus e do quod princeps dixit legis habet vigorem. Isto é, que o grupo que conquista o poder, segundo a lógica do spoil system, não está sujeito à lei que ele pode fazer, refazer e desfazer, porque não compreende que o mesmo Estado de Direito é a tal chatice das pesos e contrapesos (as forças do bloqueio) e da separação de poderes, servida por funcionários com direito à carreira, de acordo com a legitimidade racional-normativa que Weber teorizou e que, por cá, continuam a ser ostracizadas como burocráticas.

Logo, mesmo que o povão prefira o governo dos espertos (Hannah Arendt), onde a interpretação da lei é mais favorável para os amigalhaços, temos obrigação de fazer a necessária revolução cultural que nos livre destas heranças absolutistas, começando, nomeadamente, pela liquidação do centralismo do Terreiro do Paço e de outros terreiros de paços locais, promovendo uma efectiva regionalização que, em vez de espalhar centralizações, nos leve à reconstrução horizontal e federativa do político.