a Sobre o tempo que passa: Lei, ordem e corrupção no Brasil Colônia

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

31.3.07

Lei, ordem e corrupção no Brasil Colônia



O jornalista-historiador, Eduardo Bueno, vestindo-se de uma linguagem weberianamente dura, descreve, de forma realista, as grandezas e as misérias lusitanas, mas, por isso mesmo, manifesta um intenso amor às origens da sua própria pátria. E lá podemos viajar pelo tempo do senhor D. João III, Tomé de Sousa e Manuel da Nóbrega, entre letrados e guerrilheiros de Jesus, com seculares, burocratas e desterrados que saíam do Tejo à procura de um lugar onde que lhes desse vida, já que, no velho reino, eram mais os pés do que as botas.

Reparei que, se hoje cada português gasta, por mês, 430 euros com as alturas da governança, já então, no sistema de governo por conselho, o de D. Manuel tinha quinhentos membros honorários, enquanto o do filho foi reduzido para 66, coisa que se poderia repetir agora com o número de socrassessores que quase bate nos 300, mantendo o mesmo ritmo dos de Durão, Portas e Santana, com alguns a ganhar mais do que o novo rei. Já então a história de Portugal era a história do défice, do desperdício e da exagerada carga fiscal.

Bueno mostra-nos os extremos, entre o lusitano Caramaru, um desses lançados que se transformou numa espécie de rei dos índios, e o jesuíta Manuel da Nóbrega, o fundador de São Paulo, o gago das mortificações em público, ditas exercícios espirituais. E assim continuamos a viver entre o sórdido da corrupção e o dramático da procura do mais além, enquanto alguns vícios privados, de vez em quando, se inserem no bem comum, mesmo quando misturam feudalismo e estadualismo, economia privada e serviço de el-rei, num acumular de contradições que acabou por constituir esse reprodução de cidades e do próprio reino, a que hoje chamamos Brasil.

A descrição de Bueno é atraente, fazendo da história uma espécie de guião cinematograficamente colorido e tornando-se numa espécie de livro de aventuras empolgante, mesmo quando exagera no traço e caricaturiza o lado da degenerescência de uma sociedade de favoritismos, tráfico de influências, exagero de funcionários e corrupção. Porque faz, muito lusiadamente, a denúncia caseira dos nossos próprios vícios.

Aliás, a crítica acerba pode ser uma forma humanista de amor, nesta viagem por umas profundas origens medievais e renascentistas, quando ainda não tinham chegado os ventos do soberanismo, do estadualismo e do próprio negocismo capitalista e se viviam as explosões da nossa mistura de heterodoxias, entre cristãos novos, fidalgos falidos, militares andantes, navegadores, arquitectos, físicos e artesãos, todos muito papeleiros e humanamente imperfeitos.

Mas foi nesse caos, refugiados nas paliçadas, entre a voragem esclavagista e a antropofagia, que começámos a tal procura do paraíso que levou todos a desmatar uma terra quase virgem, construindo cidades e vilas, dotando-as de vereações pluralistas e erigindo um novo reino, sempre segundo o regimento, sempre violando o regimento, para também se vararem as linhas das Tordesilhas.

Todos os povos são também as respectivas origens, esse manifesto destino que a nossa liberdade de sonhar vai construindo e desconstruindo, dia a dia vencendo a necessidade, o tal desafio das circunstâncias que vamos moldando, em nome da perfeição de um mundo melhor, nesse transcendente situado a que chamamos vida, entre a aventura e o pragmatismo.

Só depois de ler tudo, de um jacto, é que reparei fazer parte da bibliografia, como meu O Estado e as Instituições, de 1998, incluído na História de Portugal de A. H. de Oliveira Marques, no volume coordenado por João Alves Dias (século XVI), com um comentário honroso.