a Sobre o tempo que passa: Perdemo-nos sempre quando apenas ficamos na crosta dos acontecimentos

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

29.1.07

Perdemo-nos sempre quando apenas ficamos na crosta dos acontecimentos

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Batem leve, levemente, como quem chama por mim... Não era a marcha de dez mil pessoas que movimentos cívicos ligados à Igreja, associações de defesa dos idosos e das crianças e grupos de escoteiros de todo o país promoveram ontem em Lisboa, com a fotogenia de Ribeiro e Castro, Bagão Félix e Kátia Guerreiro.



Mas porque continuo de "humor merancórico", persisto na azáfama daquela verdade sobre o fundo de um erro, onde a dúvida está na frente do método e não atrás, neste reler Bachelard, onde descubro que os grandes homens são úteis para a ciência na primeira metade da sua vida e nocivos na segunda metade.


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Gente não é certamente e a chuva não bate assim... Também não eram os lagartos empatados, à espera das declarações que Dias da Cunha vai fazer a Maria José Morgado. Fui ver, a neve caía do azul cinzento do céu... Mas duas mulheres deficientes morriam num incêndio no bairro da Abóbada, no concelho de Cascais e dois adolescentes ficavam carbonizadas num acidente automóvel.


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Perdemo-nos sempre quando apenas ficamos na crosta dos acontecimentos dados como adquiridos e não mais problematizados, quando as ideias se valorizam indevidamente e se transformam em factor de inércia para o espírito, mesmo quando surge uma ideia polarizadora e luminosa que nos agita.


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Fui ver. A neve caía. O tempo passava. O tempo doía. Marcelo Rebelo de Sousa concluía pela inevitável demissão do executivo camarário dos PSDs de Lisboa. O Gato Fedorento entrava na espiral hermaníaca que outrora já havia sido funcionalmente exercida por Miguel Esteves Cardoso. E o retrato íntimo da pátria era dado pelos que, no silêncio do lar, se iam sentindo cada vez menos representados pelos seus representantes políticos e pelos seus representantes mediáticos.


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Não há verdade sem erro rectificado. Reparo que Fernando Pessoa já está preso nas teias das selectas literárias e das casas-museus. Noto que Agostinho da Silva é visto como uma anedota ou um programa humorístico. Confirmo que as teses de António Damásio se transformaram em filosofia de alcova e bar do Cais Sodré. E fico com todos os cabelos em pé quando confirmo que em Portugal há filósofos que entram na moda e correm o risco de ser citados pela senhora deputada Matilde Sousa Franco.

A neve deixou de cair. Duas mulheres morriam pelo calor que não tinham. Marques Mendes fazia discursos. Representantes do PNR eram obrigados a ficar na cauda da manifestação da dita marcha pela vida. Fui ver. A neve caía e o céu não era azul nem cinzento. Continuava triste e amarrotado. Apenas me apeteceu saudar José Miguel Júdice, com quem, três décadas e meia volvida me reencontro, na defesa da mesma causa cívica.

Temo, bachelardianamente, que as boas ideias se percam à vista da costa, porque há muitas matildes e bagões em ambos os lados da barricada, em marchas por não sei quê, em dias de ver cair neve.