a Sobre o tempo que passa: A gente se transforma no caminho do meio, não é nem dum nem doutro

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

14.12.06

A gente se transforma no caminho do meio, não é nem dum nem doutro



Não há nada como dar uma volta pela imprensa brasileira, para nos vermos livres destas tenazes do "agenda setting" de certo portugalório. Foi com um breve sorriso que reparámos na circunstância de Luiz Inácio Lula da Silva, na passada terça-feira ter proclamado que "quem tem 60 anos e se diz de esquerda tem problemas, e quem é jovem e se diz de direita também tem", argumentando também que, com o passar do tempo as pessoas deixam de adotar posicionamentos radicais em relação à política. "Quando a gente tem 60 anos, é a idade do ponto de equilíbrio, porque a gente não é nem um nem outro", disse. "A gente se transforma no caminho do meio, aquele caminho que precisa ser seguido pela sociedade".





Perante o coro de protestos que se levantou de sessentões e setentões que permanecem na esquerda e que o acusaram de camaleão, o presidente veio dizer que apenas disse uma brincadeira. Podemos concordar com todos. Ele não definiu esquerda nem direita, apenas definiu o situacionismo que gosta de dizer que não é de esquerda nem de direita, porque está acima das partes e dos partidos. Já Estaline quase tinha dito o mesmo. Tal como Salazar nunca se disse da esquerda e muito menos da direita. Aliás, o nosso fantasma, quando era militante de uma causa, num regime pluralista, apesar de imperfeito, o da I República, chegou a deputado de um partido dito do centro, apesar de católico, o qual não se eximiu de amplos elogios ao governo de António Maria da Silva, o símbolo máximo do republicanismo situacionista no pós-guerra. Por outras palavras, todos eram "bonzos", como então se dizia de Silva, cercado por "endireitas" e "canhotos".



Este mesmo António Maria da Silva acabou por ser derrubado pelo 28 de Maio, liderado pelo almirante Mendes Cabeçadas, um dos activistas do 5 de Outubro de 1910 e, depois, golpista contra Salazar. Mas também este acabou por ser ultrapassado por Gomes da Costa, militante dos radicais republicanos, para depois ser esmagado por Óscar Carmona, num jogo de empatas que veio a ser deglutido pelo tecnocrata Salazar que aproveitou os escombros e supendeu a política durante quase meio século, instaurando um sistema doméstico de poder, nesse paternalismo que é a melhor demonstração de regresso ao "oikos despote" das teorias aristotélicas-

Lula da Silva apenas disse o óbvio, pôs em voz alta o que pensam os homens do poder. Todos tendem a abusar do poder que conquistam, mesmo que o tenham conquistado pelas virtudes da democracia. E a única maneira de o evitarmos é estabelecermos o sistema dos travões proposto por Montesquieu, a tal separação de poderes e o tal estabelecimento de contrapoderes, ou de forças de bloqueio segundo os lamentos de Cavaco quando era primeiro-ministro, o tal modelo que faz a democracia contemporânea, onde, segundo Popper, interessa menos sabermos quem manda, mas antes como se controla o poder dos que mandam, como representantes do todo. Porque até a virtude precisa de limites, conforme o eterno mestre de La Brède.