a Sobre o tempo que passa: dezembro 2006

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

31.12.06

Tiranos, tiranicídio, ditadores e sangue





Mataram um ditador... dizem as notícias que nos fazem recordar que a tirania é aquela forma de governo que não procura o consentimento nem a persuasão, mas a opressão e a violência, como já dizia Platão. Trata-se de um modelo que segue algumas das ideias de Xenofonte, o admirador de Esparta, que concebia, para Atenas, um governo militar. Mataram um tirano, mas continua a não haver norma universal sobre a matéria, nem sequer consenso entre os que pensam de forma racional e justa. Nestes domínios, com as esquerdas e as direitas a justificarem o sangue provocado pelos da respectiva seita, corremos o risco de não sair da espiral da violência, conforme ensinava D. Helder da Câmara, o bispo vermelho do Recife que teve a vantagem de começar pelo Integralismo brasileiro.




As nossas democracias ocidentais do pós-guerra assentaram nas fotografias de um Mussolini assassinado pelos "partisans" ou na execução do poeta Robert Brasillach pela "Libertação" francesa, tal como alguns republicanos homenageram os regicidas, ou os comunistas assentaram na execução dos Romanov, ou o pós-comunismo romeno na imagem sanguinária dos Ceausescu. Em Espanha, a guerra civil tanto assassinou José António Primo de Rivera como Frederico Garcia Lorca. Por outras palavras, não há justiça se continuarmos neste círculo vicioso promovido pela história dos vencedores, onde tudo se mede pela eficácia da vitória da força. Daí que aconselhe os incautos a mergulhar nas clássicas páginas do pensamento político sobre a matéria.




Especialmente neste Portugal do conde de Andeiro, de Miguel de Vasconcelos e daquela sucessão de assassinatos do século XX que nos fizeram o país mais magnicida da idade contemporânea, assim confirmando os nossos brandos costumes. Basta fazer a lista: D. Carlos, D. Luís Filipe (1908), Sidónio Pais (1918), António Granjo e Machado Santos (1921), Humberto Delgado (1965) e talvez Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa...




Já S. Tomás de Aquino ensinava que tal como a lei injusta não é propriamente lei, também o tirano não passa de um sedicioso, pelo que a luta contra o tirano (aquele que utiliza o poder no seu próprio interesse e não ao serviço do bem comum) não é sedição e a resistência à tirania é legítima. Salvo se da resistência resultar maior dano que a tirania ou se a tirania for considerada como justo castigo dos pecados cometidos pelo povo. Mas a resitência é prerrogativa da comunidade que só através dos seus representantes qualificados pode cometer o tiranicídio, nunca podendo os particulares matar o tirano por sus própria iniciativa (teses contrárias à de João de Salisbúria (1110-1180) e de Juan Mariana (sec. XVI)




Muito liberalmente, Locke define a tirania como o exercício do Poder para além do Direito, onde o uso do Poder não é para o bem dos que lhe estão submetidos, mas para as vantagens privadas de quem o exerce. A vontade do detentor do poder passa a regra e os comandos e acções do mesmo não são dirigidas para a presrevação das propriedades do respectivo povo, mas para a satisfação das paixões desse detentor. A tirania não afecta apenas a monarquia, mas qualquer outra forma de governo. Assim, onde o direito termina, a tirania começa.



Entre nós, Fernando Pessoa, em Cinco Diálogos sobre a Tirania, refere-a como o exercício de força; de força para obrigar alguém a fazer ou não fazer qualquer cousa; que é exercida em virtude de um princípio exterior ao individualismo tiranisado; que esse princípio não é por ele aceite; e que da aplicação desse princípio nenhum benefício, mediato ou imediato, para ele resulta.




Para Hannah Arendt, na tirania, o poder é destruído pela violência, onde a violência de um destrói o poder de muitos, gerando-se um Estado em que não existe comunicação entre os cidadãos e onde cada homem pensa apenas os seus próprios pensamentos e levando ao banimento dos cidadãos do domínio público, para a intimidades das suas próprias casas, exigindo-lhes que se ocupem apenas dos assuntos privados. Assim, a tirania privou as pessoas da felicidade pública, embora não necessariamente do bem-estar privado.




Neste contexto, assume particular destaque a teoria do tiranicídio. Se a anterior teoria escolástica considerava que o tirano apenas podia ser morto por representantes autorizados do povo, alguns autores escolásticos vão passar a defender que ele pode ser morto até por um indivíduo isolado. Entre estes, o jesuíta espanhol Juan de Mariana (1536 1624) que, em De Rege et Regis Institutione, editado em Toledo em 1599, assume uma posição de tal modo radical, que o coloca ao lado dos próprios monarcómanos. Porque considera que só a qualificação do tirano é que não pode ser arbitrária, exigindo-se notoriedade ou prévia decisão da colectividade.O facto de ter dado como exemplo de justo tiranicidio, o assassinato do rei de França Henrique III, ocorrido em 1589, levou a que o livro fosse queimado publicamente em Paris, em 1610, na sequência do assassinato de um novo rei, Henrique IV.

30.12.06

O choque de civilizações. Sem comentários.


















Dès aujourd’hui le Portugal est à la tête de l’Europe. Vous n’avez pas cessé d’être, vous portugais, des navigateurs intrépides. Vous allez en avant, autrefois dans l’océan, aujourd’hui dans la vérité. Proclamer des principes, c’est plus beau encore que de découvrir des mondes


(Vítor Hugo, em carta dirigida ao maçon Brito Aranha, saudando a abolição da pena de morte, em 15 de Julho de 1867, a qual já tinha sido eliminada para os crimes políticos em 1852)

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28.12.06

Entre receios e desejos para o ano que vem



Resposta dada ao Semanário "O Diabo" sobre o que mais receio e o que mais desejo para 2007:


Entre receios e desejos, bem apeteceria responder como homem comum, e dizer de forma democrática e pluralista, tanto o “saúde e fraternidade” da I Republica, como o slogan de Fernando Pessoa, a gozar com um dos primeiros lemas do Estado Novo “tudo pela Humanidade, nada contra a Nação”. Por isso temo que o socratismo nos continue a salazarizar, em nome de uma Europa de merceeiros mentais, que o PSD não lidere a oposição ao Bloco Central de interesses e que a autonomia da sociedade civil não assente nos homens livres da finança e dos partidos. No plano internacional, porque acredito que a Europa das liberdades nacionais e da autonomia das pessoas pode voltar a caminhar do Atlântico aos Urais, receio que não se siga a lição de Kant de 1795 e que continue esta anarquia ordenada e esta falta de ordem universal, marcada pela confusão que a república imperial que resta continua a fazer entre os sonhos da humanidade e o respectivo interesse nacional.


Desejava mesmo que D. Sebastião não tivesse morrido, para podermos ter o verdadeiro poder dos sem poder, sem apocalipses nem teorias da conspiração. Para tanto, seria conveniente restaurarmos a “res publica”, a fim de cercarmos a coroa aberta desse império sem imperador com instituições de cidadania. Por nós, bastaria que entrássemos em verdadeira organização do trabalho nacional, partindo do respeito pela palavra dada por aqueles que têm o mérito de viverem como pensam, porque neste tempo de homens lúcidos convém ter a lucidez de continuar ingénuo. Daí exigir o regresso da justiça que sempre foi o de cada um conforme as suas possibilidades, para podermos dar a cada um conforme as suas necessidades, misturando a honra do “antes quebrar que torcer”, com a inteligência dos que não têm medo e não cedem à cobardia dos que dizem que tem razão quem vence, embora saibam que, por cá, continuam a vencer os que não têm razão.

27.12.06

Alguns votos de boas festas...



Depois de breve incursão naquele Portugal profundo que é a barresiana pátria, a terra sagrada pelos meus mortos, volto ao circuito capitaleiro, das grandes novas do Estado a que chegámos e do universo televisivo, feito à imagem e semelhança de um país bem pequenino: o dos valores dos colégios pretensamente finos do capitaleirismo que formaram esta geração que pretende controlar a nossa opinião pública, onde os heróis cívicos têm que ser ex-MRPPs como foi a mamã, nos velhos tempos do PREC, quando falava em libertação, só porque tinha no quarto um poster do "make love, not war". Reparo que os discursos dos políticos continuam perdidos no inferno das boas intenções, onde continua a ter razão quem vence e onde, há muito, não vence quem tem razão.

Reparo que continuamos a ter medo de sermos quem devemos ser, esta mistura de pragmatismo e aventura que nos levou a dar novos mundos ao mundo, mas que hoje se vai diluindo nesta mesquinha procura do antes torcer que quebrar, com cedência aos neofeudalismos e neocorporativismos, especialmente quando a cidadania se esgota no indiferentismo. Porque continuamos dominados por aquela falta de organização do trabalho nacional que raramente consegue praticar a urgente avaliação do mérito.

Temo que continue esta falta de autenticidade dos políticos profissionais que tivemos de eleger e que se acentue o fosso entre as expectativas geradas e a constante falta de respeito pela palavra dada, levando a que se torne regra este processo segundo o qual, na prática, a teoria é outra. Bem gostaria que a honra voltasse a casar-se com a inteligência, que a moral voltasse a guiar os homens livres e que a economia não subvertesse a política.

Ouço que Saddam vai ser enforcado nos próximos trinta dias, temo que a guerra internacional contra o terrorismo assente na falsa ideia do conflito de civilizações e que a república imperial que resta não volta a ser luzeiro das liberdades e da justiça.
Reparo que Sócrates e os socialistas que nos governamentalizam correm o risco de nos continuar a salazarizar, em nome de uma Europa de merceiros e contabilistas, enquanto a sociedade civil continua a rimar com Pinto da Costa e o PSD não consegue ser oposição ao Bloco Central, ao memso tempo que o CDS não consegue sair da sacristia e todos se diluem num ritmo de "agenda setting" fiel ao conceito dos mecenas bancários.

Bem apetecia que a União Europeia caminhasse do Atlântico para os Urais e integrasse Bizâncio, para que a igrejinha de Mértola voltasse a ser templo, sinagoga, mesquita e capela do monte. Para que os socialistas fossem mais liberais por dentro, para que os comunistas se convertessem ao pluralismo e os direitistas se tornassem menos reacionários. Para que também desaparecesse este refúgio de um centro mole e difuso e surgisse o necessário centro excêntrico, onde muitos pudessem radicalmente militar, sem necessidade de serem queimados como extravagantes, só porque não querem descobrir o que já está descoberto, nem inventar o que já está inventado.

24.12.06

Instaurar a república, para restaurar o reino e sonhar o V Império

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Bom Natal neste Solstício, à esquerda e à direita, na cidade e nas serras, na terra, no mar e no ar, para católicos e maçons. Para católicos que não são maçons e para maçons que não são católicos, para que a religião não seja maçonaria e para que a maçonaria não seja religião, para que a direita e a esquerda sejam direitas e esquerdas, para que as cidades não sejam capitaleiras e as aldeias, vilas e lugares se não desertifiquem. Para que no princípio volte a ser o verbo e mais um deus seja o deus menino.




Sobretudo para que, depois de lerem este extracto de um "logos" maior, não me venham alguns irracionais, que se dizem ortodoxos, mesmo do centro, em nome do dogma e do falso catecismo das vulgatas, considerá-lo uma heresia, só porque embrulham a tolerância com o antiquado verniz do inquisitorialismo sebenteiro e caceteiro. Porque até os monárquicos têm que ser republicanos, dado que, para vivermos em melhor regime, onde as nações têm de ser semente do Estado de Direito universal, só poderemos restaurar o reino e sonhar com o Quinto Império do poder dos sem poder, se antes instaurarmos a república, se antes recuperarmos a autenticidade dos sucessivos círculos instauradores da
polis.



Primeiro, a dignidade da pessoa humana e, consequentemente, a moral, a ciência da autonomia, que guia os actos do homem como indivíduo.

Em segundo lugar, a autonomia da casa e da ciência dos actos do homem enquanto membro de uma "oikos", a economia.



Só depois vem a "polis", quando saímos dos sucessivos espaços imperfeitos da sociabilidade que nos podem dar as ordens normativas da moral, da religião, dos costumes e da economia, entrando na cidadania da democracia, onde, para além da racionalidade técnica do bem estar e da segurança, acedemos, através de uma conversão interior, à racionalidade ética, que sempre foi sintetizada no valor justiça.

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E tudo isto num tempo em que passámos de urbe para orbe e a polis já pode assumir-se como cosmopolis. Com os pés na terra dos homens de boa vontade, mas olhando as estrelas do deus menino e de outros deus maiores e menores. Com paz na terra e paz pelo direito.

22.12.06

Continua o regime do antes torcer que quebrar...




Jugo que o melhor comentário ao debate de ontem sobre o ensino superior vem chapado nos jornais: o confronto parlamentar revelou-se estéril. Jaime Gama ainda brindou a Oposição e Governo com mais hora e meia de debate, mas o tempo não foi minimamente aproveitado. O primeiro-ministro foi acusado de enumerar ao Parlamento orientações genéricas de uma reforma que só será apresentada daqui a seis meses e que, por isso, só serviu "para marcar calendário". Durante quatro horas, Sócrates repetiu que a Oposição não fez propostas porque quer tudo na mesma.


Foi pena. Aliás, quando temos um Presidente da República e um Primeiro-Ministro oriundos daquilo que hoje se qualifica como "Politécnicos" e um líder da oposição que foi supremo-mandador de uma universidade privada, por nomeação de uma entidade pública, uma entidade municipal onde era presidente do respectivo órgão parlamentar, muito teríamos a ganhar. Vale-nos que, depois do jogo do Benfica e antes da telenovela, tivemos uma grande entrevista com um ilustre catedrático que veio dizer que já não lê jornais e que nunca dirá nunca se os convites do poder lhe baterem à porta.


Ambos os episódios são bem reveladores do processo de desertificação de ideias em vigor, onde a cobardia passou a chamar-se gestão de silêncios, quando as circunstâncias continuam propícias para a inevitável colonização cultural que se aproxima. Juntando a isto a questão dos chamados voos da CIA, apenas confirmo que, mais uma vez, a classe política no activo, incluindo a jubilada, a aposentada e a reformada, apenas quer ser emérita, dado que parece ter perdido a vontade de ser independente, tanto na autonomia pessoal e institucional, como na própria autonomia nacional.

Apenas acrescento o que há dias comentei para a revista "Visão" e que veio parcialmente transposto no número de ontem: a
pós-revolução que instalou este regime, e quando digo regime não digo constituição nem programas de governos e partidos, mas a mistura dos discursos de boas intenções do Estado-aparelho de poder, com as práticas quotidianas da comunidade, daquilo que é a res publica e a que outros chamam sociedade civil, vivia num politicamente correcto que estava fora do tempo do ambiente internacional em que nos integrávamos, o da União Europeia pós-guerra fria e o da globalização. Agora, o que estamos a viver é a falta de autenticidade ao retardador, dado que é um governo socialista a ter que desmantelar o socialismo herdado, não por convicções assumidas, mas por exigências do défice orçamental, externamente policiadas, sem a possibilidade de recurso aos habituais magos da engenharia macromonetária, como foi a do cavaquismo governamental.

Julgo que estes "encerramentos" apenas reflectem que o chamado poder de governação do país é apenas uma espécie de governança sem governo, onde a maioria dos factores de poder já não são intranacionais, mas mera gestão de dependências e de interdependências, onde funciona uma espécie de piloto automático onde o "software" foi desenhado por outros, que não os cidadãos da República dos Portugueses. Julgo que outros encerramentos bem mais dramáticos se aproximarão, como o encerramento das universidades ou do próprio conceito de administração pública clássica, transformando a a constituição em mero objecto de dissertações de mestrado, doutoramento ou de reflexões públicas de constitucionalistas em telejornal, caso não voltarmos às virtudes plurisseculares da vontade de sermos independentes.

Com efeito, esta dissolução de Portugal no contexto da "balança da Europa", para utilizar o título de uma obra de Almeida Garrett, está a precisar daquilo que os homens de 1820 qualificaram como "regeneração", quando concluíram que, depois das invasões napoleónicas foi mau caminho ficarmos sob a tutela dos amigos protectores.

Apenas digo, em termos metafóricos, glosando um dito de Mounier, que os problemas económico-financeiros apenas se resolvem com medidas económico-financeiras, mas não apenas com medidas económico-financeiras. Apenas se resolvem quando as medidas económico-financeiras forem parcelas de um mais amplo conjunto de medidas políticas.

O que falta a Portugal é política que é coisa séria demais para continuar a ser monopólio dos políticos que temos, numa época em que o indiferentismo generalizado corrompeu a cidadania participativa e quando o aparelho de Estado está sitiado por esse tradicional processo de compra do poder, a que desde sempre se deu o nome de corrupção.

Logo, concluirei que estes encerramentos são apenas a parte visível de um "iceberg", os epifenómenos de um fenómeno que não tem sido pensado: está em crise "o Estado a que chegámos", para utilizar o dito de Salgueiro Maia sobre o 24 de Abril que ele derrubou.

21.12.06

Primeiro, a aula. Só depois, o capítulo...



Li as referências noticiosas sobre discurso de boas intenções do Senhor Primeiro Ministro quanto ao ensino superior. Acredito na determinação governamental quanto à anunciada terapia de choque. Nunca acreditei no modelo, até agora dominante, dos que querem conservar o que está, até porque nunca demonstraram querer conservar o que deve ser. Assistirei, com todo o zelo de homem livre, ao desenrolar de um processo onde a minha cidadania académica não foi, nem será, chamada a participar, mas a que responderei com lealdade aos valores e nas funções de professor catedrático e senador da minha universidade.

Sugiro apenas que não queiram descobrir o que já está descoberto nem inventar o que já está inventado: a ideia de universidade e os modelos de sucesso. Já agora acrescentem-lhe a experimentação de séculos de serviço público em Portugal, nacionalizando as excelentes ideias importadas pelos relatórios da OCDE e de outras agências globalizadoras, sem as traduzirem em calão. Os oligarcas da universidade a que chegámos preferiram a ditadura do "statu quo", outros começam a pensar no leilão e, enquanto o pau vai e vem, haverá sempre alguns primitivos actuais que aproveitarão para rapar os últimos restos do tacho, pintando-se de falsos dom-sebastiões, quando não passam de tigres de papel, repetindo o herético "dominus vobisque" de outras eras.



A história há-de registar em notas-pé-de-página este livro de estilo charlatão, onde todos vão ralhar porque falta o pão orçamental, o posto de vencimento e o diabo a quatro. Alguns até serão ousados e tentarão transformar as respectivas instituições em subdelegações das delegações asiáticas de certas potências universitárias do primeiro mundo, à espera dos futuros despedimentos da deslocalização globalizadora. Outros, percebendo que são fortes grupos de pressão corporativos, continuarão a assobiar para o lado, porque se consideram, e são, "praeter decretum", dos decretinos ocupantes do aparelho de Estado. Os restantes, perante tanta geometria variável, correrão para o acaso da encomendação feudal.



Por mim, sorrio, embora saiba que sofrerei no lombo a chicotada que deveria caber aos pecadores. Mas continuarei seguindo o lema de Hernâni Cidade: "primeiro, a aula, só depois o capítulo". O ensino superior continua à procura do bom senso, mesmo que ele seja Gago, mas não Coutinho. Falta-lhe um corrector de rumos colectivo a que na navegação se chamou sextante.

Os grandes portugueses...e a ausência de mulheres



Em tempos friorentos, nada melhor para aquecer a alma do que uma boa gargalhada, especialmente quando os pretensos comandantes das instituições seguem a máxima daquele que dizia que um quarto de hora antes de morrer ainda estava vivo. Por isso, notei como, entre os grandes portugueses do programa de Maria Elisa passaram a entrar Salazar e Cunhal, mas não qualquer mulher, nem a Amália. Julgo que tudo seria diferente se, em vez de figuras humanas individualizadas, pudessem participar entidades metafísicas. Porque, neste caso, sempre poderiam entrar na lista uma Maria da Fonte ou então quem inevitavelmente venceria o sufrágio divino e humano, a portuguesíssima Nossa Senhora de Fátima. Como me contaram, até houve, noutras épocas, um lusitano sacerdote da Califórnia que, ao abrir uma escola de língua portuguesa, utilizou o "slogan": venha aprender a única língua em que Nossa Senhora falou ao mundo!

20.12.06

O país dos avençados. Manda quem pode, obedece quem deve. Ou o poder do saber comprado...



Vou transcrever uma notícia curiosa e pouco politicamente correcta : O Governo de José Sócrates prevê gastar no próximo ano mais de 95,4 milhões de euros em estudos, pareceres, projectos e consultadorias. Este ano só os gabinetes dos ministros dispunham de uma verba de 4,4 milhões de euros para esta rubrica. O gabinete do ministro da Administração Interna, António Costa, é mesmo um dos mais gastadores com um montante de 628 652 euros. Já no próximo ano, segundo o Orçamento de Estado para 2007, o Ministério da Administração Interna conta com uma verba superior a 3,7 milhões de euros para a realização de estudos e pareceres. Mas no ‘ranking’ dos Ministérios mais gastadores, o primeiro lugar é ocupado pelo Ambiente, com uma verba de mais de 25 milhões de euros, seguido da Ciência com mais de 17,5 milhões de euros.

As Obras Públicas ocupam o terceiro lugar com um montante superior a 14,6 milhões de euros, seguido da Justiça com 8,2 milhões e da Economia com 6,2 milhões. Já as Finanças soma uma verba de 4,4 milhões de euros e a Segurança Social de 4,2 milhões. Com valores abaixo dos da Administração Interna ficam assim a Saúde (3 milhões de euros), a Agricultura (2,6 milhões), os Negócios Estrangeiros (1,9 milhões), a Cultura (1,7 milhões) e Educação (1,1 milhões). O Ministério da Defesa ocupa o último lugar da tabela, com 675 384 mil euros.

No total, a verba do Governo para estudos e pareceres em 2007 é superior a 95,4 milhões de euros.



Vou fingir que não sou professor catedrático de uma universidade pública lusitana e clamar por uma política de transparência que nenhum governo será capaz de pôr em prática: dêem-nos a lista dos consultores escolhidos, com nome posto no "Diário da República". Mais: entreguem imediatamente todos esses pareceres a todos os restantes órgãos de soberania e aos partidos institucionalizados da oposição, como se faz em muitos países democráticos, a começar por Espanha.

Julgo que deste modo todo o povo entenderia melhor o crescente neocorporativismo e neofeudalismo. Haveria um mínimo de "glasnot" e poderíamos pensar na "prestroika". Até seria interessante, para se detectarem as variações de humor de alguns desses avençados que também são "opinion makers". E o silêncio dos que são à segunda-feira são professores universitários, à terça-feira consultores de privados, à quarta de clubes desportivos, à quinta de partidos e à sexta de si mesmos. Qualquer politólogo sabe de ciência certa, sem qualquer poder absoluto, que tal tipo de actividade é eventualmente parcela de um conceito de pressão, bem próxima daquilo que outros indicam como compra do poder. Se a actividade de professor público e de exercício de saber fosse mesmo poder.



Claro que, apesar de se controlarem as acumulações de professores públicos em instituições privadas, estas formas de actividade privada nunca foram controladas nem no âmbito dos registos obrigatórios de interesses. Manda quem pode, obedece quem deve.

Por mim, confesso que sempre rejeitei a actividade, apesar de algumas vezes convidado. Fiz duas análises políticas para o gabinete do ministro Marques Mendes no tempo do cavaquismo e não quis receber nada nem continuar na coisa. E rejeitei dar parecer sobre planos da água e reforma das prisões com governos socialistas. As muitas outras consultas que tenho dado, ou são públicas, nomeadamente para a comunicação social, ou são institucionais e gratuitas, no âmbito institucional. Julgo que tal exercício intelectual, numa "res publica", deveriam ser incluídas no âmbito da prestação de serviços à comunidade, a cargo das universidades e não sei se foram incluídas no parecer da OCDE sobre a coisa, ou objecto de uma recomendação do Conselho de Reitores. Por isso é que gostaria mesmo de ser funcionário público ou de ser trabalhador de uma fundação que transformasse essa nobre actividade numa receita própria das universidades. Aprendi isso com o meu mestre Guilherme Braga da Cruz que até o trabalho como jurisconsulto do Estado Português no Tribunal da Haia foi considerado serviço do bem comum e da função. E assim me liberto de futuros convites para membro de júris em determinadas escolas...

Com saudades do "conventus publicus vicinorum"



É tempo de sol e de frio, nesta bela chegada da invernia lusitana, aqui, na esquina da cidade que ainda conserva o sentido público da vizinhança, mesmo quando rareiam os homens bons da mais recente pequeno-burguesia de rurícolas origens e quando as instituições autárquicas se vão esquecendo das suas raízes no "conventus publicus vicinorum". Porque os conselhos são cada vez mais municípios estipendiários do império e, de tanta barganha capitaleira, acabam por perder-se nas teias da futebolíticas e da patobravice, deixando-se enredar nos meandros difusos da compra e venda do poder, com os seus avençados intelectuários e os seus sargentos verbeteiros da micropolítica partidocrática.

A própria democracia, que devia assentar na federação das nossas comunas sem carta, perdida em indiferentismo e corrupção, ameaça tornar-se num normal anormal de sucessivos indiferentismos, transformada em mero objecto do "agenda setting" de governos e oposições, perdendo o sentido dos gestos, onde o verso épico da martirologia antifascista soa a falsete, porque o principal perigo vem de termos crescido por fora sem crescermos por dentro, em civismo e autonomia individual, como sempre se exigiu a gente democraticamente bem educada.



Assim, perdidos no rolo unidimensionalizador desta apagada e vil tristeza, preferimos a mão estendida da cunha e do subsídio ao antes quebrar que torcer dos velhos repúblicos e daaquilo que era a tradicional fibra do português de antanho, desse homem livre da finança e dos partidos que tinha vergonha de andar de mão estendida para encontrar um lugar na fila do neofeudalismo e do neocorporativismo.



E não me venham com a lenga lenga da fatalidade globalizadora, porque é um crime cedermos aos processos colonizadores das repúblicas imperiais alienígenas, negando a biodiversidade cultural. De outro modo, apenas semearemos futuras revoltas fundamentalistas dos oprimidos pela cultura plastificada, onde o "medium" substitui a "mensagem" e a forma elimina o conteúdo. Prefiro manter o nosso tradicional olhar antropológico, essa velha mas não antiquada disponibilidade para o abraço armilar.

19.12.06

Os meus votos de Bom Natal, nestas vésperas de solstício, em plena guerra que não é formalmente guerra



Voltei agora do Rádio Clube Português, onde, sem música de natal e ida ao hipermercado para comprar prendinhas, me juntei às vozes dos que, na senda de Kant, de Cristo, dos estóicos ou de Confúcio continuam a clamar por uma paz que não seja a paz dos cemitérios, mas apenas a declaração do fim de guerra de todos contra todos, como é esta falsa ordem internacional ditada pela falsa paz dos vencedores. Porque, se a nível interno dos Estados de Direito conseguimos a imperfeita institucionalização dos conflitos, a que damos o nome de democracia pluralista, ainda não demos passos mínimos para acabar com o regime de estado de natureza entre os Estados e as soberanias. Ainda não assumimos o programa de Kant, datado de 1795, lançando as sementes de um verdadeiro direito universal, capaz de dar justiça aos homens de boa vontade.



A ditadura dos Estados a que chegámos e as páginas escritas pela história dos vencedores, entre as duas superpotências da guerra fria, esses escorpiões venenosos que se mordiam dentro de uma garrafa, e a presente desordem internacional bem organizada, com uma só república imperial e um cube de vencedores, expresso pelos membros permeanentes do Conselho de Segurança da ONU, constitui a negação da terra dos homens livres. Importa que a história volte a poder ser escrita pelos vencidos e pela esperança dos desesperados.



Criemos uma arquitectura institucional universal feita de acordo com os interesses e os valores da maioria da humanidade que ainda faz parte da história dos vencidos. Acarinhemos as liberdades individuais, da sociedade civil internacional e das nações que rimem com libertação e com comunidade de destino no universal. Entendamo-nos à maneira de Fernando Pessoa:
o Estado está acima do Cidadão, mas o Homem está acima do Estado. A nação é apenas a forma de passagem para a super-nação futura. Tudo pela Humanidade, nada contra a Nação.



O homem internacional ainda continua a ser pior do que o hobbesiano lobo do homem. Muito lorenzianamente somos, cada vez mais, ratos do próprio homem. Só os valores universais do respeito pela institucionalização dos conflitos e um verdadeiro modelo de Estado de Direito universal nos poderá dar a necessária justiça, com a consequente paz na terra, para os homens de boa vontade.

18.12.06

Hoje vou gerir o silêncio, que sempre foi um transcendente situado

17.12.06

Não tapemos o sol com uma peneira..



Imagem picada em H. J. C. Oliveira onde há belas memórias de guerra e paz

Acordo. Abro as janelas. Deixo entrar o sol desta quase invernia, plena de luz. Passo os olhos pelos jornais da "net". Recordo a última tarde deste fim do Outono, quando os restos de sol acariciavam a cidade. Esqueço. Porque quando tentamos matar saudades da cidade, nessa procura do tempo perdido, acabamos sempre em cogitadelas sobre a fatalidade da globalização, quando tropeçamos com uma qualquer loja dita dos trezentos, ou com um muçulmano do subcontinente indiano a vender luzinhas de Natal, distribuídas pelos grossistas da Rua do Bemformoso. Vale-nos que noutra esquina dessa peregrinação, logo topamos com Fernando Pessoa a sair da Rua dos Douradores e nos reconciliamos com a pátria.

Leio os jornais da rede que me chegam ao computador. Reparo que as revelações de Carolina continuam a fazer parangonas, reagindo agora contra a quebra do silêncio do principal visado. Noto como o aparelho de Estado, pressionado pelo quarto poder, decidiu atacar a corrupção, analisando a folha de árvore da futebolítica, mas sem querer enfrentar a floresta. Temo que este uso de meios supremos para coisas modestas, ao analisar a parte não nos permita compreender o todo. Os pequenos crimes da corrupção desportiva são bem menos graves do que aqueles que afectam a confiança pública na democracia representativa.



O mundo das relações jurídicas não é o mundo das relações sociais. O direito não é a vida. Se os órgãos do Estado decidiram juridificar o mundo desportivo chamando-o para o teatro da lei, dos polícias e dos tribunais cometeram o erro de violar o princípio da subsidiariedade, dado que uma ordem superior nunca deveria interferir na esfera de autonomia de uma ordem inferior.

A chamada "verdade desportiva" nunca deveria ser estadualmente defendida, porque, se ao cairmos neste logro quase cometemos no mesmo vício da Inquisição, quando atribuiu ao braço secular a defesa de valores religiosos. Se um Estado laico não deve meter a sua "langa manus" na estrutura de autonomia jurídica de uma ordem religiosa, muito menos deve desperdiçar os bens escassos postos ao serviço da investigação criminal a saber como foram nomeados árbitros ou a demonstrar que a grande penalidade foi mal aplicada.




Menos Estado e melhor Estado implica reconhecermos que o direito estadual não é a única ordem normativa vigente. Importa reforçarmos a ordem normativa da moral, a ordem normativa das religiões e, naturalmente, a ordem normativa das próprias organizações desportivas. Atacar a corrupção desportiva, derperdiçando meios que deveriam ser usados para outros fins, nomeadamente o mundo do financiamento partidário ou da evasão fical é apenas continuarmos a tapar o sol com uma peneira.

Os processos de compra do poder no mundo do futebol apenas deveriam interessar ao Estado quando fossem reveladores de interferência desse mundo na ordem superior, mas a metodologia de andar atrás da opinião pública pode revelar-se uma má conselheira.
Acordo. Abro as janelas. Deixo entrar o sol desta quase invernia, plena de luz.

15.12.06

As frases que nos hão-de salvar já estão todas escritas, falta apenas salvar-nos




Atirei com bolas de oiro
à janela do morgado.
Acertei na morgadinha.
Ai Jesus! Estou desgraçado!
Ai Jesus! Estou desgraçado!
Ai Jesus vou p’rá cadeia!

Depois de sabermos que o Sporting de Braga conseguiu passar para a fase seguinte das competições europeias e de se confirmar a nomeação de Maria José Morgado para a centralização dos processos de investigação relativos à corrupção no futebol, o país acordou descansado e disponível para ouvir o chefe do grupo parlamentar do PP-CDS anunciar o lançamento da candidatura de Paulo Portas à substituição de Zé Ribeiro e Castro, agora que Maria José Nogueira Pinto está mobilizada pelo "não" à IVG e que Manuel Monteiro se congratulava com o discurso da magistrada Morgado no Congresso do seu PND. As tribos desavindas do Largo do Caldas continuam sem marcar um golo à Braga e assim não acederão à fase seguinte da competição política, nem com a gratidão da Conferência Episcopal Portuguesa.

Acertei na morgadinha
que estava a fazer meia.
Que estava a fazer meia
que estava no seu balcão.
Acertei na morgadinha
foi mesmo no coração.


Esperemos que a magistrada consiga transformar em prática os respectivos discursos em tudo o que é "agenda setting", que consiga transformar as respectiva "verba" numa eficaz "res" para bem da coisa pública e da necessária confiança do povo naqueles que, constitucionalmente, administram a justiça em nome do mesmo povo, mesmo que agora tenha de encerrar-se na exigente gestão dos silêncios. Esperemos que a montanha não venha a parir os ratinhos que, às vezes, se sucedem aos gémitos imensos.

Foi mesmo no coração
onde havia de acertar!
Agora vou p’rá cadeia
ninguém me pode salvar.

Preferia que tudo acontecesse segundo as clássicas regras da eficácia, como aconteceu com a estrutura judiciária de Coimbra sobre o processo que envolve o presidente da AAC, que só veio para os jornais no dia seguinte, embora reconheça que, neste momento, a PGR tem que saber lidar com o facto consumado, dos presentes julgamentos populares da opinião pública. Preferia que, em vez das presentes tragicomédias, em ritmo de telenovela, surgisse por aí um ministro da justiça que repetisse o modelo do ovo de Colombo, batendo à porta de um qualquer José Alberto dos Reis e optasse por uma limpeza científica nesta sucessão de reformas processuais, para que o urgente Manuel Rodrigues não seja mais uma vez um ministro da Ditadura Nacional.

De outra maneira, poderá ser que se opte pelo modelo do relatório alienígena, como acontece com o presente relatório da OCDE sobre o ensino superior em Portugal, com Alberto Costa a utilizar o modelo de Mariano Gago, pedindo aos juízes Baltazar Garzón e António Prieto que façam um relatório sobre a nossa endogamia, conservadora do que está, depois de não saber conservar o que deve ser. E de relatório em relatório até podemos abdicar dos restos da nossa autonomia pensante, até podemos extinguir a nossa própria liberdade nacional, abrindo um concurso público internacional de consultadoria para a própria governação.

14.12.06

A gente se transforma no caminho do meio, não é nem dum nem doutro



Não há nada como dar uma volta pela imprensa brasileira, para nos vermos livres destas tenazes do "agenda setting" de certo portugalório. Foi com um breve sorriso que reparámos na circunstância de Luiz Inácio Lula da Silva, na passada terça-feira ter proclamado que "quem tem 60 anos e se diz de esquerda tem problemas, e quem é jovem e se diz de direita também tem", argumentando também que, com o passar do tempo as pessoas deixam de adotar posicionamentos radicais em relação à política. "Quando a gente tem 60 anos, é a idade do ponto de equilíbrio, porque a gente não é nem um nem outro", disse. "A gente se transforma no caminho do meio, aquele caminho que precisa ser seguido pela sociedade".





Perante o coro de protestos que se levantou de sessentões e setentões que permanecem na esquerda e que o acusaram de camaleão, o presidente veio dizer que apenas disse uma brincadeira. Podemos concordar com todos. Ele não definiu esquerda nem direita, apenas definiu o situacionismo que gosta de dizer que não é de esquerda nem de direita, porque está acima das partes e dos partidos. Já Estaline quase tinha dito o mesmo. Tal como Salazar nunca se disse da esquerda e muito menos da direita. Aliás, o nosso fantasma, quando era militante de uma causa, num regime pluralista, apesar de imperfeito, o da I República, chegou a deputado de um partido dito do centro, apesar de católico, o qual não se eximiu de amplos elogios ao governo de António Maria da Silva, o símbolo máximo do republicanismo situacionista no pós-guerra. Por outras palavras, todos eram "bonzos", como então se dizia de Silva, cercado por "endireitas" e "canhotos".



Este mesmo António Maria da Silva acabou por ser derrubado pelo 28 de Maio, liderado pelo almirante Mendes Cabeçadas, um dos activistas do 5 de Outubro de 1910 e, depois, golpista contra Salazar. Mas também este acabou por ser ultrapassado por Gomes da Costa, militante dos radicais republicanos, para depois ser esmagado por Óscar Carmona, num jogo de empatas que veio a ser deglutido pelo tecnocrata Salazar que aproveitou os escombros e supendeu a política durante quase meio século, instaurando um sistema doméstico de poder, nesse paternalismo que é a melhor demonstração de regresso ao "oikos despote" das teorias aristotélicas-

Lula da Silva apenas disse o óbvio, pôs em voz alta o que pensam os homens do poder. Todos tendem a abusar do poder que conquistam, mesmo que o tenham conquistado pelas virtudes da democracia. E a única maneira de o evitarmos é estabelecermos o sistema dos travões proposto por Montesquieu, a tal separação de poderes e o tal estabelecimento de contrapoderes, ou de forças de bloqueio segundo os lamentos de Cavaco quando era primeiro-ministro, o tal modelo que faz a democracia contemporânea, onde, segundo Popper, interessa menos sabermos quem manda, mas antes como se controla o poder dos que mandam, como representantes do todo. Porque até a virtude precisa de limites, conforme o eterno mestre de La Brède.

13.12.06

Da necessária universidade de homens livres à memória de Marcello Caetano





Ora aí está uma excelente notícia, com a OCDE a descobrir aquilo que alguns têm vindo a proclamar: que universidades e politécnicos públicos passem, gradualmente, a ser fundações financiadas pelo Estado, mas geridas como se fossem do sector privado, e que professores e trabalhadores não-docentes das escolas percam o vínculo ao Estado e deixem de ser funcionários públicos. Por mim, julgo já o ter proposto, com as letras todas, numa conferência que proferi no Instituto Francisco Sá Carneiro em 3 de Outubro de 2000, a convite de José Manuel Durão Barroso, onde também denunciava, de forma veemente, a sistémica avalióloga que estava a emergir. Sofri as consequências persecutórias de ter tido razão antes do tempo.

Como liberal que sou, mas defensor da não fragmentação do papel supletivo do aparelho de Estado, quero que esta forma de comunitarização das universidades, à maneira das "corporations" anglo-americanas, nos consiga libertar das teias do salazarento corporativismo e do seu irmão gémeo negocista, com que muitos socialistas e sociais-democratas traduzem as belas ideias de desregulação e de desestadualização, ao reduzirem-nas aos fins do lucro e da subsidiocracia.



Porque a destruição do modelo pombalista, napoleónico e salazarista de universidade deve ser acompanhada pelo lançamento de uma forte política pública de criação de um sistema de creditação, que garanta a efectiva igualdade de oportunidades. Mas esta novidade, que, afinal, é um regresso ao conceito medieval de corporação de mestres e sociedade, além de ser flagrantemente inconstitucional, não tem raízes na nossa tradição de deduções cronológico-analíticas, embora seja a mais conveniente para as manobras de engenharia financeira do nosso combate ao défice orçamental, com o governo a poder lavar as mãos como Pilatos e a cair numa espécie de governação sem governo, típica das pilotagens automáticas que pouco se preocupam com as liberdades nacionais.

Com alguma desta gente educacionóloga e avalióloga, corremos o risco de uma asiatização do nosso sistema de ensino superior e poderemos cair nas garras sorridentes do grande negocismo, como ocorreu com o lançamento das quase defuntas privadas, cuja imagem de marca se perdeu no Tribunal de Monsanto. Mas vale a pena tentarmos. Os tempos que nos devoram exigem que a ideia de universidade passe a rimar com os homens livres.



Por estas e por outras é que ontem me calei em blogue. Há dias em que, de tanto dizermos diante de outros públicos, nada dizemos a esta anónima comunidade blogueira, com quem, quase quotidianamente interagimos, executando este papel de publicistas, onde procuramos não confundir o privado com o publicitado, o ramo da árvore com a floresta, os grupos institucionais de conflitos com a pátria e até as tecnocratices com a ideia de "universitas scientiarum".

Ontem foi mais um dia de muitos outros onde não descobri o silêncio nem a falta de paraíso, com mais uma prova de doutoramento onde fui um dos arguentes e uma conferência em memória de um dos maiores professores universitários do século XX que, por acaso foi presidente mandador mor da nossa república. Um dos que viveu a angústia do conflito entre a ética da convicção, como deve ser a razão da Universidade, e a ética da responsabilidade, que faz submergir o humanismo no mar maquiavélico da chamada razão de Estado.

E Marcello Caetano, é dele que estamos falando, não conseguiu conciliar o lume da dita racionalidade finalística (a Zweckrationalitat de Weber) com o lume da dita profecia (Padre António Vieira), equivalente à weberiana racionalidade valorativa (Wertrationalitat). Ficou-se pela angústia, pela fidelidade a uma certa ideia eterna de universidade e pelo sonho de um certo patriotismo científico. Faz hoje parte da nossa história dos vencidos e por isso continua eterno.

11.12.06

Porque já choveu em Santiago, cuidado com o mau tempo que nos ameaça




Depois dos primeiros exercícios de miniférias dezembrinas, regressamos à rotina, preparando as próximas miniférias do Natal e do Ano Novo, ficando a saber que a Direcção Geral dos Impostos (DGCI) instaurou mais de um milhão de contra-ordenações por prática de infracções fiscais entre Janeiro e Novembro deste ano, que morreu Augusto Pinochet e que hoje se comemora o 10º aniversário da Fundação Mário Soares, enquanto o Portugal dos homens comuns exercita as memórias delatórias e a luta de invejas, lendo os parágrafos escaldantes de um caso de polícia, o da alternadeira feita primeira dama da futebolítica, e rindo de si mesmo com as glosas vérmicas do Gato Fedorento. Os meus votos de boas festas vão para a estrutura policial e do Ministério Público, para que tenham um ano novo e muitas prosperidades no cumprimento do respectivo dever, o de serem servidores do bem comum, contra a fragmentação neofeudal e os privilégios corporativos dos que se pensam fidalgos do "ancien régime".

Quanto a Pinochet, que lhe mantenham a pedra em cima, mas que reparemos que ele não passa de mais um na longa fila dos traidores dos princípios. Basta recordar que também entre nós, nas vésperas do 28 de Maio de 1926, alguns governantes maçons, como era Salvador Allende, acabaram por nomear militares maçons, como era Augusto Pinochet, pensando que maçons e militares poderiam ser leais aos princípios e às instituições da legitimidade, assentes no voto popular. Que viva a democracia e o Estado de Direito e que não volte chover em Santiago, em Braga ou em Lisboa.




Quanto à Fundação Mário Soares, basta percorrermos o que está disponível na Internet para saudarmos a bela obra de recuperação da memória já semeada por um dos mais ilustres pais-fundadores deste regime, congratulando-nos com os parcos subsídios do Estado que a ajudaram a crescer. Que o exemplo fique para outros grandes políticos da nossa praça! Que escapem às garras dos caprichos de presentes e futuros ministros e dos eventuais salazarinhos subestais que ocupem a administração, directa ou indirecta, da dita administração do futuro aparelho de Estado! Ainda bem que, nesse exercício de serviço público, a coisa cabe a uma entidade publicamente constituída, mas dependente do estatuto dos homens livres... Já estou farto que actores políticos, em pleno exercício de funções públicas, tenham que comentar exposições de pintura de artistas mortos com a pneumónica ou que tenhamos de gramar exercícios espirituais de explanação ideológica por damas dos ditos.

Quanto ao mais recente caso de polícia, onde o "voyeurismo" delator já ocupou o conceito de livro, com a antiga editora de Snu Abecasis, depois de espanholizada, a entrar em concorrência com a imprensa sensacionalista, apenas nos enoja que certa populaça volte a ser animada pelos mais rascas atavismos que sempre conduziram ao descarrilamento moral da pátria.



Por outras palavras, cuidado com os pinochetinhos e os salazarinhos que nos continuam a vermizar. Podem chamar-se autoras de confidências policiais, ou manifestações de benfiquistas em hipermercados durante lançamentos de coisas chamadas "livros", entre ódios e invejas. Prefiro estudar os sistemas dos Estados de Segurança Nacional e de autoritarismos modernizantes, semeados pelas doutrinas da CIA nos anos sessenta e setenta, relendo o tratado de geopolítica de Augusto Pinochet, os manuais de segurança nacional de Golbery do Couto e Silva ou as traduções em calão que, por cá, se fizeram dos ditos, num processo bem descrito pelas encíclicas do papa João Paulo II. Apenas espero que a Fundação Mário Soares abra um capítulo sobre a matéria, com toda a politologia que ainda lhe falta.

Ainda também não fizemos a necessária purga da verdade sobre o próprio 28 de Maio de 1926, com a longa lista de traidores à I República, transformados em "viracasacas" pelo Estado Novo, à imagem e semelhança dos traidores à monarquia liberal, transformados em "adesivos" pelo afonsismo. E já o podemos fazer, porque o nosso péssimo regime é o menos péssimo de todos quantos temos tido, dado serem insignificantes o mesmos tipos de traidores. Por isso, saúdo, de forma politicamente incorrecta, figuras como as de Mário Soares, de quem nunca fui seguidor ou membro da Corte, especialmente quando a presente sondajocracia o detesta, em nome das modas que passam de moda e das maiorias conjunturais, incluindo as dos blogues, até dos blogues meus amigos, que o elegeram como o pior português da história, como se a história dependesse dos apetites da populaça que gosta de transformar bestiais em bestas e bestas em bestiais.



Por isso, como homem do contra, continuo a preferir o poema de alguém que foi assassinado pelos mesmos césares de multidões, um tal Frederico García Lorca, que cantou sobre outra chuva, caída sobre outra Santiago e que será eterno:

Chove en Santiago
meu doce amor.
Camelia branca do ar
brila entebrecida ô sol.

Chove en Santiago
na noite escura.
Herbas de prata e de sono
cobren a valeira lúa.

Olla a choiva pol-a rúa,
laio de pedra e cristal.
Olla no vento esvaído
soma e cinza do teu mar.

Soma e cinza do teu mar
Santiago, lonxe do sol.
Ãgoa da mañán anterga
trema no meu corazón.

9.12.06

Os salazarinhos, os caceteiros e a falta de confiança na palavra pública



Continuam as parangonas e as parábolas sobre os muitos salazarinhos que nos sitiam bem por dentro dos nossos fantasmas de direita e preconceitos de esquerda, sobretudo entre os tais centristas homens do poder que se transformaram nos feitores dos ricos, quando se mantêm autistas, reaccionários, implacáveis, mas parecendo sedutores e inteligentes, para roubar palavras a Fernando Dacosta. Porque eles são os escravos que nos sanguessugam, as eternas cadeias vivas da nossa servidão voluntária. Prendem-nos por dentro e alastram como mancha difusa nesta "fashion" capitaleira e burguesóide que vai proliferando sem botas de elástico. Salazar não passa desse estado de espírito que nos sustém porque o diabo são os outros, esse alguém semi-imaginário, semi-real, que vem sempre da outra banda de quem somos e de quem dizemos que tem o monopólio das mãos sujas só porque as não lavou como Pilatos.

Mas a grande burguesia que se amancebou com os restos do baronato devorista e que se continua a dizer fidalga de tantas concubinagens históricas, esconde-se atrás dos raros filhotes que eram da oposição, porque tinham as costas largas e dá ao tal diabo o carimbo das rurais origens e trejeitos, porque era das Beiras, falava "axim" e até tinha uma Dona Maria como governanta de São Bento, onde mantinha um galinheiro e morreu virgem.



Para os homens da finança que também invocam a circunstância de terem sido mecenas dos intelectuais antifascistas, depois de darem uns subsídios-anúncios à revista da PIDE, ele tanto era o catedrático que media o poder pelo saber, como o burocrata que geria corruptos, mas era incorruptível.

Mas Salazar não renasceu porque, afinal, nunca caiu da cadeira. Foi atirado ao mar por Dona Maria e volta agora com as marés vivas do desencanto que estão furando as dunas, entre a tecnocracia da "révolution d'en haut" e os micro-autoritarismos subestatais do neocorporativismo e do neofeudalismo que vão fragmentando a autoridade do Estado.



Não falta sequer o regresso do caceteirismo, conforme confessou publicamente uma dita veícula de transmissão, depois de quebrar o eixo na cabecinha de um vereador Bexiga, ex-deputado socialista e tudo. Esperemos que a turbulência não leve à tradicional manifestação de massas das elites, como já fizeram os deputados dragões no parlamento, porque seria uma má perua repetir a dita festança pelo natal.

Está em causa o dito aparelho de Estado que, segundo a Constituição, administra a justiça em nome do povo. Porque é o próprio povo institucionalizado em Estado que pode ser posto em causa, se os apitos e furacões se casapiarem e se camaratizarem, em ineficiências dilatórias e muitas barganhas que deslustrem o garantismo, sem conseguirem agarrar o Al Capone por uma simples fuga ao fisco. A cidadania pode desintegrar-se pelo indiferentismo, se não assumirmos que, no princípio, têm de voltar a estar os princípios, que, no princípio, tem de estar o fim, que, no princípio, será sempre o verbo e não a verba que voa.



Porque o elemento fundacional do próprio comunitário vivido é a palavra posta em discurso que, segundo o étimo grego, sempre foi logos, que não deve ser traduzido por um restrito conceito de razão, como simples soma analítica de rácios, conforme transparece da presente monomania tecnocrática do custo-benefício, onde Teixeira Santos esquece que também Cristo não sabia nada de finanças, ao contrário de Francisco Louçã e de Alberto João Jardim.


Porque, citando o primeiro, ilustre doutor em economia, "estamos à beira do maior perigo da corrupção no sistema social a apropriação brutal de piratas que mandam nos clubes de futebol, nas empresas de construção e que jogam na especulação imobiliária e em algumas câmaras municipais".


Porque, citando o segundo, o mais maioritário dos nossos políticos da democracia, "não há que fazer o jogo daqueles que na área do PSD também querem estar a comer da gamela do sistema político", "o inimigo número um do povo madeirense é o senhor Sócrates, o Senhor Santos e seus colaboracionistas". "Nós vamos participar em todas as lutas políticas, em todas as lutas sociais, em tudo o que seja desencadeado para ajudar a derrubar o Governo Sócrates ", disse.



Talvez seja melhor regressarmos ao aristotélico e tomista estilo do conhecimento modesto sobre coisas supremas, não nos dispersemos nas picuinhices gélidas de certo filosofismo esotérico que nos faz definhar nessa espiral de metodologismos fragmentários que pensam obter um pretenso conhecimento supremo sobre coisas modestas. Por isso aí estão essas eternas discussões do sexo dos anjos entre os que se desgrenham em bizantinices que fazem da política um arrazoamento esdrúxulo que tudo reduz a discussões na especialidade de um orçamento de Estado que deixou de ser geral.