a Sobre o tempo que passa: Semana de manipulação da memória

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

23.10.06

Semana de manipulação da memória

Começo de mais uma semana, em tempo dito de mau tempo, sob o signo da memória, pois daqui a um pedaço estarei a arguir uma dissertação de doutoramento sobre a matéria e, dentro de dias, assistirei a uma operação de revisionismo histórico, onde tentará manipular-se a dita, enquanto o país aguarda ansiosamente o concurso sobre os grandes portugueses, onde um dos candidatos escolhidos é precisamente o grande inquisidor.

Por isso, ao passar os olhos pelos jornais, reparo que
um dos nossos partidos legalizados, o PNR, é entendido pelo respectivo líder como uma plataforma, onde se conjugam várias tendências de extrema-direita, desde os salazaristas aos nacional-socialistas ou os fascistas. O equilíbrio, em particular na acção, surge difícil, tendo em conta, por exemplo, o histórico provincianismo de Salazar e o agressivo racismo de Hitler ou o teatralismo de Mussoli ni. Mas o presidente do PNR acha que não.

Vale-me que hoje entrei em experiências de acesso à rede através de uma plataforma sem fios, depois de consultar o mercado e depois de reparar, como potencial consumidor, que um dos quatro grupos da concorrência, depois de prometer uma campanha que duraria até 31-10-2006, decidiu mudá-la na semana passada e não cumprir a promessa escrita anterior, dizendo que até mandou retirar os folhetos que tinha nas lojas. Tentei protestar, não resultou.

Aqui, o capitalismo não tem respeito pela palavra dada, como é timbre da ética protestante que o gerou. Aliás, sempre me podem invocar exemplos de primeiros-ministros que prometeram não aumentar os impostos ou manter as SCUTs. Bem como de ministros da economia ou de secretários de Estado do mesmo ministério que, no dia seguinte a proferirem determinadas afirmações, vêm a público negá-las redondamente.


Mas voltando à memória, apenas direi que quem a procura manipular raramente repara que pode, no dia seguinte, surgir quem desmonte o manipulador, até por razões de legítima defesa da verdade. Basta recordar o tom do relatório de um enviado de John Kennedy ao salazarismo do começo dos anos sessenta, quando o enviado de Washington declarou que Portugal não era governado por um ditador, mas antes por dois fantasmas, o Infante D. Henrique e Vasco da Gama. Isto é, o ditador, fazendo manipulação revisionista da história, tentava que o discurso de justificação do poder parecesse firmado nessas figuras históricas.

Julgo que este modelo salazarento ainda está em vigor em muitos segmentos dos micro-autoritarismos sub-estatais e prevejo que vamos ter uma semana fértil nestas operações de branqueamento. Aqui estarei para as desconstruir. O revisionismo estalinista não tem suficiente lixívia para apagar a verdade, mesmo quando os estalinistas se inscreveram em partidos anti-estalinistas.

Já agora, conto que, numa brincadeira de amigos, fizemos uma simulação de votação dos grandes portugueses. No nosso círculo ganhou o Fernando Pessoa, mas em segundo lugar ficou Salazar, votando neste gente anti-salazarista. Todos chegámos à conclusão que votámos na mesma opção, porque Pessoa é uma espécie de anti-Salazar e Salazar, uma espécie de Anti-Pessoa.