a Sobre o tempo que passa: Castelos de palavras recortadas dos manuais de um pensamento petrificado

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

25.4.06

Castelos de palavras recortadas dos manuais de um pensamento petrificado

Os regimes, em Portugal, caem de podre porque, muitas vezes, ultrapassam todos os prazos de validade que lhe garantiam autenticidade. Só que a apatia e o indiferentismo gerados pelas manobras da elite no poder, lançam o colectivo numa inércia cobarde, inversamente proporcional ao activismo dos oposicionistas, cujo vanguardismo, marginal face à opinião pública, resulta, precisamente, da frustração de não se sentirem, entre ela, como peixe na água.

Vejo, leio e ouço o ritual oficioso do regime neste seu 32º aniversário. Não reparo nos habituais devaneios das portas que Abril abriu. Gosto do ritmo e da erudição de Jaime Gama. Não tenho expectativas quanto ao de Cavaco. E depois de o ouvir, tenho de concluir que ele fez abrangência no diagnóstico, até sublinhada por Jerónimo de Sousa, rendido a esse relatório tecnocrático sobre a ausência de política social.

No plano das consequências, o golpe de Estado do 25 de Abril de 1974, que Costa Gomes, no plano operacional qualificará como um acaso cómico, é uma espécie de libertação da mola desoprimida que se partiu, para utilizar-se uma expressão de Fernando Pessoa.

É que, como Salazar tinha confessado a António Ferro, o povo português é bondoso, inteligente, sofredor, dócil, hospitaleiro, trabalhador, facilmente educável, culto, mas excessivamente sentimental, com horror à disciplina, individualista sem dar por isso, falho de espírito de continuidade e de tenacidade na acção, pelo que de tempos a tempos se assiste ao fenómeno de nascimento de certas ondas de pessimismo, dessa ânsia de deitar tudo a perder, não se sabe bem porquê, porque sim, desejo infantil de variar, de mudar, de quebrar o boneco para ver o que tem dentro.

Volto ao discurso de Cavaco, na tal proposta de um compromisso cívico para a inclusão social. Deve ter sido do prévio de conhecimento de Sócrates, porque este logo diz que não podia estar mais de acordo e que foi a pensar nisso que o governo já fez isto e já fez aquilo, que o presidente lembrou aquilo que o governo já começou a fazer. Por mim, fiquei sem saber como se vai executar o plano, para ele não ser mais uma boa intenção, à maneira da Fundação Salazar, lançada por Américo Tomás. De qualquer maneira, Marques Mendes concorda com os valores expressos por Belém e diz que até conhece as ideias do presidente.

Abril é, sobretudo, essa descompressão, inicialmente gerida por uma Junta de Salvação Nacional, donde emerge um Presidente da República, o General António de Spínola, um Governo Provisório e um Conselho de Estado, tudo em nome de um programa do MFA que promete a democracia política pluri-partidária, um desenvolvimento socializante e uma descolonização com autêntica autodeterminação das populações coloniais, admitindo-se tanto a plena independência como a própria permanência na área da soberania portuguesa. Só que o programa é rigorosamente vigiado por uma comissão coordenadora dos jovens oficiais que haviam corporizado o golpe, divididos entre os operacionais, como Otelo Saraiva de Carvalho, e os mais intelectuais, como Melo Antunes, e, além disso, há o povo inorgânico, os homens da comunicação social e da cultura também comunicacional, os restos da oposição clássica e os movimentos políticos nascidos nos crepúsculo do regime, entre estudantes e sindicalistas politizados.

Ainda o discurso de Cavaco, aplaudido de pé pela bancada do PS. Quem irá comandar esse plano proposto? O presidente? O governo as IPSS? Ou não se trata apenas de mais um intervencionismo discursivo, sem consequências, a não ser no inferno das boas intenções?

Digamos que nesse dia de 1974 nos vimos livres de um regime que havia sido montado por um avô autoritário, ao estilo do pai tirano, para, depois de algumas cenas de violência familiar, chegar o tempo da geração do pai modernaço e bon vivant, muito viajado, que não tinha problemas de abrir as janelas, porque resistia às correntes de ar.

Por isso é que, a certa altura, no fim da década de oitenta, os membros da família, fartos dos laxismos desse pai modernaço, que não gostava de ler dossiers e que até meteu a ideologia na gaveta, pediram ajuda a um tio austero, que nunca tinha dúvidas e raramente se enganava. E é ele que trata de pôr ordem no orçamento, pinta a casa e arranja os caminhos e as cercas do quintal.

Por outras palavras, como dizia Ortega y Gasset, todas as revoluções são pós-revolucionárias. Medem-se menos pelas intenções dos primitivos revolucionários e mais pelas acções dos homens concretos que fazem a história, sem saberem que história vão fazendo. Porque, na prática, a teoria é outra...

O discurso de Cavaco pareceu-me um belo relatório, à maneira dos encomendados pelo rei D. Manuel II à escola francesa dos discípulos de Le Play, sendo digno de ir para a estante onde guardo Léon Poinsard, do tipo vá para fora cá dentro. Cavaco continua a ser bom aluno e foi constitucionalmente correcto e politicamente neutral, prometendo que só depois falará da classe política, da reforma do sistema político e da economia. Freitas não esteve presente, ruminando a hipótese que lançou de usar-se a força contra o Irão, esquecido que está dos tempos em que andava em comícios com o Bloco de Esquerda, contra Bush.

Vai, a partir de 25 de Abril de 1974, viver-se a euforia. Libertam-se os presos políticos. Deixa de haver censura prévia. Regressam os exilados. Surgem à luz do dia os partidos políticos. Álvaro Cunhal atravessa a cortina de ferro e chega de avião ao aeroporto da Portela. Soares vem de Paris, de comboio, e desembarca na estação de Santa Apolónia. Cunhal emociona-se na frieza de ter que cumprir o papel de Lenine. Soares, sem papel, é demagogo, fala em democracia, mas logo clama pela necessidade do fim da guerra.

Os portugueses acordam estremunhados de um sono forçado que teria quase meio século de censuras, proibições e repressões. Embriagam-se colectivamente com liberdade de expressão, liberdade de reunião, liberdade de associação. Com liberdade e libertinagem. Há comícios, manifestações de apoio e de repúdio, bem como mesas redondas que debatem o que até então haviam sido os livros proibidos, os filmes proibidos, as palavras proibidas.

Todos correm à procura de um tempo que julgam perdido, sonhando viver em poucos dias o que outros povos polidos e civilizados haviam levado décadas a germinar e a consolidar.

Cavaco clama pela justiça social. Uns dizem que é social-democrata, outros que está pela doutrina social cristã. Até Manuel Alegre botou palradura, congratulhando-se com a circunstância de não ter ouvido um ralhete contra os deputados, mas acusando Cavaco de plágio sobre uma proposta eleitoral alegrina. Até invocou Marx e clamou que justiça social era aquilo que em Abril de 1974 se chamava socialismo. Coisa que eu pensava ser proveniente de Aristóteles e baptizada como cristã por São Tomás de Aquino há sete séculos. Também eu vou dormir descansado.

São castelos de palavras recortadas dos manuais de um pensamento petrificado, teorias, "slogans", fraseologias, palavras cheias de letras amontoadas à toa, discursos, palavras cruzadas, num qualquer xadrez sem regras. De madrugada chegara o sonho há tanto esperado, a hora da liberdade, o país da emoção, finalmente recuperado.

Abril ressoa a nevoeiro feito aurora, é a revolução de um Portugal mais inteiro, com justiça, com primavera, com nação de corpo vivo. E para muitos, até Spínola se assume como o condestável da lusitana antiga liberdade, ao sinal do antes quebrar que torcer, nesse dia que parece de ressurreição, onde soldados nos dão crenças, horas de sonho, com liberdade e com pão.

Quebrando as algemas da tirania, parece que regressa o Portugal marinheiros, dos heróis do mar, do nobre povo, da nação valente e imortal, gritando às armas, às armas da libertação, sobre o silêncio das praias desertas com direito a azuis infinitos. E assim como que voltam o Quinto Império, as baladas de Bandarra, a Mensagem de Pessoa, as profecias de Vieira, a luz vencendo a bruma, com Camões regressando, numa mão a espada, na outra, a pena.

Porque ainda ontem era o triste dedilhar das guitarras, quartos escuros em mansardas e as janelas saudosas sobre os telhados de uma cidade morta, a lua escondida, por trás das chaminés, restos de chuva nas ruas e alguém escondido, à luz dos candeeiros, enchendo folhas brancas de palavras negras, palavras que só ele um dia poderia ler. Agora, a rádio vai trazendo novas de liberdade, diz que os tiranos foram libertados e canta liberdade em hino nacional, tudo parecendo voltar a ser o Portugal-missão. O desencanto seguirá dentro de semanas.