a Sobre o tempo que passa: agosto 2005

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

31.8.05

Recandidatura. Comentário, sem imagem, para sacudir o pessimismo

Oitocentos notáveis portugueses estavam na sala quando se deu o anúncio da recandidatura regeneradora da pátria, da democracia e da república... Eu não estava lá. Porque quando, no passado dia 7 de Dezembro de 2004, foi à FIL homenagear Soares como figura histórica, nunca reparei que estava a ser instrumentalizado para esta procissão de notáveis do situacionismo, aliada à vontade de poder, de palco e de revisionismo histórico, com alguma feudalidade à mistura. "Mea culpa".Por favor, onde fica o exílio?

A montanha deu à luz o esperado rato

Mons parturibat, gemitus immanes ciens,

eratque in terris maxima expectatio.

At ille murem peperit. Hoc scriptum est tibi,

qui, magna cum minaris, extricas nihil


Por outras palavras: uma montanha poética, em jantar de amigos que foram a caminho de Viseu, deu à luz um sonoro rato que, apesar de tudo, foi um belo discurso, embora houvesse prévios e enormes gemidos, enquanto a pátria tinha sido embalada por enormes expectativas de ainda haver política. Mas Manuel Alegre preferiu ser fiel, obediente e reverente à partidocracia que de que é figura excelsa...


A fábula de Fedro, segundo a adaptação castelhana de Samaniego, do século XVIII, tem a seguinte interpretação:


Con varios ademanes horrorosos
los montes de parir dieron señales;
consintieron los hombres temerosos
ver nacer los abortos más fatales.
Después de que con bramidos espantosos
infundieron pavor a los mortales,
estos montes, que al mundo estremecieron,
un ratoncillo fue lo que parieron.
Hay autores que en voces misteriosas,
estilo fanfarrón y campanudo
nos anuncian ideas portentosas;
pero suele a menudo
ser el gran parto de su pensamiento,
después de tanto ruido, sólo viento.


O mesmo Samaniego acrescentava: La montaña que pare un ratoncillo ¿qué otra cosa es sino la crítica de aquellos escritores que se nos presentan con un género de énfasis que hace mucho más ridículo lo huero de sus obras?


A obra poética de Alegre nada tem a ver com a respectiva obra política. Merece a estátua que Carlos da Encarnação lhe quer lançar em Coimbra. Sugerimos que seja inaugurada pelo dr. Aníbal Mário de Soares Cavaco.

Até porque o acordo de bastidores que gera a grande unidade antifascista do engolir sapos vivos não pode ser compensada pela vaga de fundo de um qualquer "tsunami" que desse um pouco de poesia a este cinzentismo prosaico e gerontocrático em que se transformou a política do regresso ao passado.




30.8.05

Depois de terra queimada, nacionalizemos as florestas, já!



O meu antigo professor, Doutor Vital Moreira, mantendo a coerência de socialista de sempre, acabou de editar a seguinte análise: (i) a propriedade privada e o mercado não garantem um ordenamento racional da floresta; (ii) o interesse privado não assegura a prevenção dos fogos florestais (nem o combate contra eles); (iii) a garantia de rendimentos privados implica enormes, e desproporcionados, custos públicos; (iv) a resposta ao flagelo impõe a intervenção do Estado, restringindo mais ou menos severamente o uso da terra para efeitos florestais ou impondo obrigações onerosas aos proprietários florestais.



Não há dúvida que (i) nos últimos trinta anos, tal como nos antecedentes, não tem havido ordenamento racional da floresta; (ii) não temos assegurado a prevenção dos fogos florestais; (iii) há muitos custos públicos com os incêndios; (iiii) há que dar prática ao princípio liberal do fim social da propriedade.



Nos últimos trinta anos temos tido governos socialistas e sociais-democratas que: (i) não conseguiram um ordenamento racional da floresta; (ii) não nacionalizaram a dita e agora culpam os interesses privados; (iii) gastam muito no combate à respectiva ineficiência de governação; (iiii) odeiam o direito de propriedade, segundo o conceito do Visconde de Seabra.

Também ninguém duvida do seguinte: (i) os socialistas e sociais-democratas que nos governam, incluindo ex-comunistas e ex-democratas-cristão, são maus governantes; (ii) continuam a querer governar Portugal; (iii) continuam a fazer mau uso do dinheiro dos impostos que nos põem em cima; (iiii) logo, importa, para mantermos a mesma ilusão socialista e social-democrata, extinguirmos os portugueses e Portugal, para salvarmos o conceito de intervenção do Estado.



Contudo, está provado que quem mais prejuízo tem com estes desgovernos (i) são os interesses privados que pagam impostos; (ii) até porque são os proprietários de casas e matas ardidas que mais prejuízos têm; (iii) são os bombeiros não públicos que mais fogos apagam; (iiii) e tanto o "público" como o bem comum são feitos de privadas pessoas individuais, de privadas pessoas colectivas e de comunitário amor pela terra. Porque antes de haver Estado já havia povo.

Já agora, para cumprirem o programa do 11 de Março de 1975, antes de nacionalizarem as matas, propriedade de 500 000 portugueses, nacionalizem também o direito de superfície urbano, para levarem ordenamento à cidade e ardermos todos. Depois disso, lá teremos que desembarcar outra vez no Mindelo, para florestarmos o país dos montes claros, antes de chegarem socialistas de direita salazarenta para estadualizarem a propriedade comunitária e socialistas de esquerda para deixarem arder o resto. Amen!

Finalmente, há boas notícias!



Finalmente, há boas notícias: entre presidentes de câmara, vereadores e membros de assembleias municipais e de freguesia, vamos eleger 43 489 autarcas, o equivalente à população do concelho de Sesimbra, e quase o mesmo número de professores, ou de licenciados candidatos a professores que ficaram por colocar. Mais do que isso: segundo um estudo do Banco Mundial basta eliminarmos a corrupção para triplicarmos o rendimento "per capita" e colocar-nos ao nível da Finlândia.

Por isso é que todos esperam o regresso de D. Sebastião Soares ou de D. Sebastião Cavaco, que o furacão Katrina não desembarque na praia da Junqueira em manhã de nevoeiro e que não volte a ser publicado nenhum estudo do "El Pais" sofre os nossos incêndios. Com efeito, em Portugal já não há maquiavelismo de salão, sindicalismo do elogio mútuo, persiganga, jagunçada e saneamentos. Porque esta gaseificada passagem do estado cardinalício para a liquefeita postura de sereno e suprapartidário presidenciável constitui a justa homenagem à eterna conspiração de avós e netos que nos continua a fazer apetecer o exílio.

Apenas recordo o que foi proclamado em Novembro de 2004 por um dos nossos mais notáveis presidenciáveis, quando estava no poder um governo que lhe não era afecto:

Primeiro
"É preciso restituir a voz aos cidadãos, se quisermos evitar revoltas descontroladas ou rupturas que podem levar a aventuras, como aconteceu no fim da I República, dando lugar a uma ditadura obscurantista».

Segundo
«A integração na União Europeia defende-nos de aventuras militares, mas só uma consciência cívica nacional evitará outros perigos. Há uma opacidade na sociedade portuguesa que tem de ser varrida. Precisamos de mais honradez republicana».

Terceiro
« O ambiente social é de grande crispação. É visível a crise de confiança no Governo, oposição, partidos, instituições, justiça, políticos, educação, cultura ciência, saúde, segurança social, trabalho, medicina... é preciso sacudir a depressão».

Quarto
«Portugal encontra-se numa situação bem difícil, sem estratégia para o futuro, desorientado, perdido no seu labirinto político».

Quinto
O «polvo da corrupção que alastra os seus tentáculos no Estado, na sociedade, nos partidos e nas autarquias». Há que desencadear a «censura moral dos portugueses».

Sexto
«Acho que o sistema está a seleccionar, para baixo e para o mal, os políticos. Já me questionei porque houve, após o 25 de Abril, tantos políticos de excepção, moralmente inatacáveis, e agora só vemos figuras menores».

Sétimo
«Deixar correr o indiferentismo perante os abusos, as injustiças e as corrupções é o pior que pode suceder».

Oitavo
«Começou a criar-se uma osmose na sociedade portuguesa entre negócios fáceis e tráfico de influências que é muito preocupante».

Nono
«A justiça mostra-se incapaz de agir. As polícias sabem muita coisa mas só actuam por critérios pouco claros».«O processo da Casa Pia é numa vergonha nacional. Tornou-se numa máquina de fazer dinheiro para os media. A continuar assim a vida nacional, vamos assistir a revoltas e a um mal-estar incontrolável na sociedade»

Décimo
«Será necessária muita coragem e algum tempo para pôr cobro à situação», «mesmo no tempo da ditadura havia alguns casos conhecidos, mas não havia uma corrupção sistemática».


29.8.05

Nem Soares, nem Cavaco! Quero estar de acordo comigo mesmo!



Quando todos e cada um dos portugueses são obrigados a tomar partido nas grandes candidaturas presidenciais que se anunciam, declaro que não alinho nesta estúpida bipolarização que tende a mobilizar a cidadania, não entre o povo de esquerda e o povo de direita, mas de acordo estilos psicológicos, entre os que gostam das bochechas bonacheironas e soarentas e a impertigada pescoceira cavaquense. Nem sequer temos que optar entre as heranças da grande burguesia republicana com descanso na Praia do Vau e a extracção rural da vivenda Mariani, para símbolo dos "self made men". Entre colégios e bombas de gasolina, nem o oitenta antifascista nem o oito das folhas de cálculo do ordenamento tecnocrático.

Se certa esquerda ainda vai fingir que mexe, com os "radical chic" de uma utopia que não gosta dos gaiteiros da festa da Quinta da Atalaia, muitos há que, oriundos de tais costelas , preferem a racionalidade analítica à persistência quase miguelista dos que não superam a ideia de paraíso terráqueo. Mas pior talvez seja a lógica de terra queimada da chamada não-esquerda, que é coisa que a direita envegonhada costuma chamar a si mesma.



Infelizmente quem, como eu, não finge sair da tribo de direita, resta manter-se nesta heterodoxa rebeldia que, sem ser diletante, apenas continua a ser intimamente legitimista, porque continua a ser capaz de perder tudo aquilo que conquistou na cidade, só para ter a ilusão de salvar a própria alma. Por outras palavras, não estarei ao lado de muitos meus amigos e companheiros de luta, no lançamento das candidaturas de Soares e de Cavaco. Prefiro continuar a viver naquela paz que equivale à estóica tentativa de estar de acordo comigo mesmo, ainda fique em decacordo com muitos outros que prezo.

Não alinho na aceitação resignada do mal menor, como qualifico Soares. E não serei de direita se se identificar a direita com a procissão cavaquista.

Uma guerra permanente contra o indivíduo. Recebido de M.T.C.R.


Imagens picadas em
Lita Cabellut

Não sei como dizer da extensão real dos prejuízos que causou e continuará a causar a sufocação, na vida da maioria das pessoas em Portugal, provocada pelas ditas classes dirigentes dos nossos destinos em termos de direitos e deveres; provocada pela apatia endógena de um ajuntamento de estranho povo.

Nós somos o médio e o curto e longo prazo provocado por sucessivos governos incapazes de olharem para além dos seus umbigos, e para os dos seus amigos, em parceria de vácuo com restantes gentes.

Quem dirá de uma vez por todas das consequências irreversíveis que impunemente recaíram sobre um povo que até já alinha nos processos que conduzem à fatalidade de perderem a nação que existia dentro dele?



Em suma, quem pode medir as consequências da impossibilidade a que se chegou?

A que profunda impotência moral e espiritual toda esta castração tomou a dianteira e que levou e leva, a não conseguir conduzir, ao menos uma ideia, até ao dia de amanhã?

A entropia tornou-se a lei fundamental?

Já não há quem responda por responsabilidade histórica?



Tudo isto me parece a paz dos cemitérios.

Sempre pensei que a vida resistia a toda e qualquer uniformidade, e que a perspectiva era, a da diferenciação e não a uniformização. Mas, onde está a capacidade de resistência ao status quo? A inquietude, a busca do novo? A dimensão essencial do desenvolvimento?

Não tenho resposta para isto. A força do poder social que me rodeia é a do imobilismo que colhe aprovação unânime junto dos senhores do mando e dos senhores que o aceitam.

Também observo uma repugnância social por tudo o que é desconhecido, cimentando-se a praga da não teimosia ao status quo de que acima falei.

Prevalece o pensar mecânico assente na estratégia mesquinha de uma suposta vitalidade.

Não sei como se permite que o poder vá destruindo minuciosamente o sentido da vida. E sucumbe-se. Desconheço qual será e donde virá o golpe de misericórdia ou a ordem burocrática que feche, de jeito inequívoco, todo este manhoso e longo ciclo.



Quem dará a magnifica bofetada insolente na dita ordem estabelecida de há longuíssimos anos? Ninguém? Não, ninguém. A vida está anestesiada e o tempo e suas promessas, desapareceu do horizonte.

Creio que as pessoas se deixaram invadir pelo espírito do que não tem importância.

A amizade e a solidariedade são medidas a gramas em qualquer açougue.

Falta a vergonha que nem se esbarra na ausência do seguro companheirismo, o que leva inevitavelmente a profundas crises na vida privada; à descrença do que com mimo sustentávamos como seguro.

A vontade de cada um é gerida pelo planificador de serviço que controla os pseudo-acontecimentos, tudo ao sabor de um vento fabricado por ventoinhas de ar roto.

Os governantes e os governados agarram-se a insignificantes rotinas de mais do mesmo, dando a impressão de um movimento com pitadinha de falsa história que se fina no segundo seguinte.

Intrigas de bastidores na vida das gentes anãs, conflitos nos aparelhos partidários, rivalidades pessoais, corridinhas de 20 metros para cortar a meta de um qualquer poder, tudo, constitui a amálgama da mesma farinha que nunca dará pão.

Não se permutam instantes de verdade por paixões envenenadas.

Receio pelo preço que já se paga pelas obstruções à vida, pelo deitar fora do desespero de cada um, enquanto as termiteiras desta nossa sociedade, actuam em congestão digerida a título individual como se se encontrassem inseridas de pleno direito, numa colectividade histórico-social.

As intenções do sistema são ele próprio.

A guerra contra o indivíduo é alternada com as tréguas que o sistema lhe concede enquanto se mostre necessário que o individuo o sirva.

Há que negar o indivíduo como princípio, como intenção. Há que produzi-lo como aparência.

Assim, gostava que neste calendário sem profeta, mas ao qual se adapta o bloco da vida monolítica em dimensão de mínima arena, gostava, dizia eu, que algures ficasse escrito que eu tornei a pedir a palavra, em nome próprio.


M. T.C.R.