a Sobre o tempo que passa: janeiro 2005

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

31.1.05

Comemorar os mortos, não cuidar dos vivos



As notícias da secção de cultura dos jornais deste que continua a ser um reino cadaveroso:

Morreu o escritor Manuel Lopes.
Morreu o académico e político Benjamim Pinto Bull.
Eugénio de Andrade comemora 82 anos.
Miguel Torga morreu há dez anos.
Xutos e Seal foram os mais ouvidos em 2004.
Escritor e humorista francês morreu.
Morreu historiador e filósofo Eugenio Garin.
Novo romance de Saramago em Outubro.
Morreu Susan Sontag.
Milhares de obras de arte roubadas.
Pedro Santana Lopes edita em livro as crónicas desportivas que publicou.
Paulo Portas, o Malraux lusitano, propõe um choque de valores.
O livro de Alexandre Frota foi um êxito editorial.
O número de declarações de IRS com rendimentos superiores a 250.000 euros, diminuiu 92% nos três anos de governo do PSD/CDS....

A maçonaria e o pensamento jurídico-político português



Muito simbolicamente, é hoje editada, em letra de forma, uma conferência que proferi a convite do Grande Oriente Lusitano e que é prefaciada pelo Dr. António Arnaut, texto que aqui publicitamos. Amanhã será melhor compreendido o silêncio que, por enquanto, mantenho sobre outras circunstâncias referentes ao dia de hoje, onde os acasos confirmam certas permanências causais.

Esta nota destina-se, essencialmente, a renovar o nosso sincero agradecimento ao Prof. Doutor José Adelino Maltez pelas suas investigações sobre a influência de Maçonaria no pensamento jurídico-político do Portugal contemporâneo. Dessas laboriosas investigações resultou um livro, no prelo, e esta notável conferência, proferida em 15 de Abril na Ordem dos Advogados, em Lisboa, por deferência do então Bastonário Dr. José Miguel Júdice, a quem também renovo o nosso reconhecimento.



O Doutor José Adelino Maltez é professor catedrático do Instituto de Ciências Sociais e Políticas e da Faculdade de Direito de Lisboa. Como ele próprio se assume, é um tradicionalista liberal. E, apesar de profano, declara-se em fraternal comunhão com o livre-pensamento, que é a marca profunda da Maçonaria liberal, já que o ramo conservador, autoproclamado de regular, impõe certas regras, como a crença num Deus revelado.

Depois de proferir esta conferência, integrada nas celebrações do 2º Centenário do Grande Oriente Lusitano, o nosso fraterno Amigo logo foi alvo de críticas e "denunciações" por conviver com os heréticos pedreiros livres. Não admira. Em pleno século XXI ainda há por aí sicários do defunto Pina Manique e daquele Inquisidor que em 18 de Outubro de 1817 exconjurou a noite com o patético "felizmente há luar", querendo assim dizer que havia tempo para levarem a cabo as execuções do Grão Mestre Gomes Freire de Andrade e dos seus companheiros da primeira revolução liberal.



Esta comunicação evidencia, mesmo para aqueles cujo horizonte mental não vai além da Betesga, a decisiva influência do"humanismo laico, de matriz maçónica", na arquitectura jurídico-administrativa e político-cultural da Pátria Lusitana. Desde o Visconde de Seabra, autor do primeiro Código Civil, ao reformador Mouzinho da Silveira, e ao Bispo Aires de Gouveia, patrono do projecto-lei que aboliu a pena de morte, foram muitos os maçons que contribuíram para a "conformação do modo de ser português", como expressivamente escreve o Doutor Adelino Maltez. De resto, todas as Constituições liberais e democráticas foram escritas ou inspiradas por membros do Grande Oriente Lusitano.

A publicação deste trabalho é pois, não apenas uma oportunidade para a divulgação do contributo da Ordem Maçónica num sector tão importante da nossa vida colectiva, mas também um desafio para novas investigações neste e noutros campos, que aguardam a charrua despreconceituosa dos servidores da cultura pátria.

Lisboa, Palácio Macónico, 31 de Janeiro de 2005 ( 70 anos depois da histórica carta do Grão-Mestre Norton de Matos ao Presidente da Assembleia Nacional contestando o projecto lei que havia de ditar a passagem do GOL à clandestinidade).

António Arnaut

A angélica queda dos senadores...



Os quatro senadores, que a RTP elevou à imagem de olímpica serenidade, transformaram-se, com a aproximação das eleições, no mais do mesmo politiqueiro, quando, perdendo a dimensão do concílio dos deuses, trataram de assumir o cajado inquisitorial dos marechais da república, entrando no leilão dos apoios às forças em disputa de lugares governamentais, não para serem ministros, mas para influenciarem, et pour cause.

Ao contrário dos recatados setenta anos de Ramalho Eanes, aqueles que pretendem usurpar a memória do "Senatus" de Roma, para desvalorizarem o "Populus", entraram em regime de queda dos anjos, quando, pouco a pouco, se foram conhecendo os meandros das prebendas de "potestas" que possuem e que, muitos, face à espuma dos "media", continuam a confundir com a "auctoritas".



Os nossos ausentes-presentes não passam daqueles falsos deuses que, como os restantes mortais, e cidadãos, entraram no jogo eleitoral, mas sem terem que ir às feiras dos coiratos, ao incómodo dos comícios e outras formas de mãos sujas. Um, acumulando avaliações, academias, júris, distribuição de subsídios, reitorados honorários, medalhas de poeira e algumas vindictas, fica-se, muito recatadamente, por um almoço no Grémio Literário com o chocador de valores.

Outro, adicionando posturas políticas, depois de quase estar para ser ministro de Marcello Caetano, fundou um partido ao centro que se coligou com o PS, primeiro, e com o PSD, depois, para ser candidato do PSD, zangar-se com Cavaco e voltar à liderança do CDS que, entretanto, abandonou, para receber de Durão Barroso a indigitação para a ONU, pedir para ele a maioria absoluta e agora fazer o mesmo com o chocador de tecnologia.



O terceiro, mais igual a si mesmo, com direito a televisão, mas sem necessidade da intermediação de Portas e Guedes, esquecido das antigas e juvenis ligações a Soares Martinez, Kaúlza de Arriaga e Adriano Moreira, tendo o engenho de inventar o Expresso e a SIC, sempre teve a coragem da monogamia partidária. Não precisa do choque de gestão. É o número um, quando estava em três. E assim vai ficando, empresarial.

O último, pater reipublicae, sentado na serenidade dos oitenta anos e na fundura de uma uma instituição, para onde mobiliza as memórias de 1820, 1910 e 1974, é o verdadeiro Rómulo do regime, manipulando a loba da pátria e dando aos outros candidatos à "auctoritas" breves adjectivações, contidos silêncios e uma outra massagem espiritual.

Quando, para se conseguir a "potestas", se finge viver no etéreo da "auctoritas", a república entra em regime de contrafacção e o antiquíssimo símbolo "SPQR" corre o risco de ser usurpado pelo imperialismo do principado e o eventual desvio do dominado, com os senadores a assumirem-se como falsos deuses que procuram ser um qualquer "dominus". Pelo menos, na minha aldeia, sempre se dizia que o "senatus populusque romanum" apenas queria dizer que o "Senhor dos Passos Quer Respeito". E tudo acontecia sempre depois do Carnaval e antes do começo do roxo período da Quaresma, onde se conta da história do Iscariote que foi à ceia que acabou por ser a última. Por cá, a cena é outra, é apenas a dos cardeais contando estórias e comendo literatura de cordel...


A memória esquecida de 1640



"Devemos passar de uma concepção unipolar do Estado para uma outra multipolar, que passe por Lisboa, Barcelona, Bilbau, certamente por Sevilha, e juntos poderemos acabar de alguma forma esta península que nunca foi concluída" (palavras de Josep Carod-Rovira, o líder da Esquerda Republicana da Catalunha, com triângulo e tudo, de passagem por Lisboa, a convite da Fundação Mário Soares, no ano de 2005).

Nada de espantar pardais. Apenas protestamos contra o facto de não repararem nos meus amigos do Movimento de Libertação de Castela e de não assinalarem que em Portugal já é língua oficial uma variante do leonês, o portuguesíssemo mirandês. Também estranhamos que Rovira não tenha invocado Santiago da Galiza e o nosso enraizado sentimento mata-mouros, como continua a soprar lá para os lados do Funchal e que bem poderá incendiar Las Palmas.



Eu, português e iberista, adepto da aliança peninsular e conhecedor da soma de Aljubarrota com Toro, defendo convictamente que as muitas Espanhas da Espanha resolvam o respectivo contencioso com o Estado Espanhol sem nos incluírem no rol dos que não conseguiram fazer 1640. Porque foi a partir de então que nós, república dos portugueses, nos conformámos como comunidade política moderna e com adequado seguro de vida independente naquela pós-modernidade peninsular que bem pode portugalizar a Ibéria.

Notem apenas, irmãos ibéricos, que Portugal sempre foi mais do que este Portugal que resta. 1640 deu origem àquela América Portuguesa que, depois de ser Reino Unido, da armilar, se tornou independente da Santa Aliança sob o nome de Brasil. Mas nem por isso deixo de simpatizar com a ERC, a Convergência, a União e o Partido Nacionalista Basco. Sugiro que se faça uma tradução para catalão das obras de Francisco Velasco Gouveia e de João Pinto Ribeiro.

30.1.05

O camarada Jerónimo, os burros e os ciganos



Estava eu a ler a história de Jerónimo, o grande chefe dos apaches de Pirescoxe, que foi um dos mais decididos opositores ao domínio das forças vivas do grande capital monopolista, quando descobri que, a certa altura, o mesmo líder terá dito, de Portas, que o mesmo está "com o olho no burro e outro no cigano", porque "se não vai com o PSD vai com o PS". Dando desconto não racista a esta tirada popularucha, criticando quem parece querer dar para os dois lados, ficámos sem saber se ele chamou burro ao colega da prometida coligação (Santana) e se qualificou como cigano o lado socialista, ou invertidamente. De qualquer maneira tratou-se de piada de mau gosto, típica da esquerda ortodoxa quando ensaia a ironia heterodoxa e a metáfora, até porque os burros autênticos, os da casta asinina, são uma espécie protegida e os nossos ciganos já não estão sujeitos à injusta capitis deminutio.



Aconselhamos o velho apache, frequentador da feira de Santa Iria, a consultar os manuais ecológicos dos seus companheiros melancias, bem como a ganhar a ligeireza literária do romance de Santiago Mata-Portas, o "Até sempre, camaradas", sobre o qual podem ler-se as seguintes palavras de outro camarada, Urbano Tavares Rodrigues: "a humanidade profunda na austeridade de quem entrega a sua vida à causa da libertação de um povo merece todo o fluir da narração, as reacções de muitas das figuras. Se é certo que o campo e os camponeses pobres e explorados, os pinhais de névoa, a desconfiança dos humildes, a bravura dos operários nas suas greves aqui aparecem, o tema central é a vida do Partido, as ligações, as casas de apoio, os contactos e precauções; por fim a prisão, a tortura, a morte. No presente um romance histórico, a diversos títulos: como obra de arte que é; como testemunho de alcance sociológico e político; como exercício moral (não confundir com moralizante, no estrito sentido apologético). Em resumo, um grande livro, inesperado e onde os sentimentos mais fortes e puros do homem encontram a simplicidade e o rigor transparente da expressão".



De qualquer maneira, confessamos a nossa simpatia por este aristocrata do operariado que, utilizando uma linguagem afectiva, consegue garantir a telúrica defesa do castiço antifascismo marxista-leninista, cuja liquidação seria um profundo golpe no nosso património cultural, dado que a estética trotskista e albanesa, ao ritmo do major Tomé e da Joana Amaral Dias, não nos parece tão enraizada naquele nosso neo-realismo à Soeiro Pereira Gomes e Alves Redol, mas que é capaz de assumir o vermelho do meu glorioso Sport Lisboa e Benfica, ao contrário de quem Nobre Guedes tão co-inceneradamente qualificou como o Malraux de São Julião da Berra.

O que seria de nós, portugueses, se substituíssemos o padre Cruz por São José Maria Escrivá e as festas do Avante pelos desfiles do "orgulho gay"? Os velhos apaches, as gentes do Couço e do Baleizão têm que estar atentas a outras espécies virais que, em vez daquela velha resistência das árvores morrerem de pé, preferem o transformismo e ameaçam reconstituir o movimento do prá-frente-petrogal, apoiando a quase anunciada recandidatura de Diogo Freitas do Amaral à presidência da assembleia-geral da CGD, como amanhã parece vir anunciado no "Diário Económico".

Já vi um porco a andar de bicicleta...



Desde que vi um porco a andar de bicicleta já nada me espanta neste Portugal virtual... Depois de Pedro Santana Lopes, plagiando descaradamente Manuel Monteiro, apelar para que os responsáveis dos outros partidos clarificassem as suas posições quanto aos casamentos entre homossexuais e a adopção de crianças por estes casais, chegou a vez de Paulo Portas rejeitar hoje qualquer alteração à lei para permitir os tais casamentos entre homossexuais ou a adopção de crianças por estes casais que não podem casar, embora tenha sublinhado o respeito do partido "pela vida privada" de todos, como se um partido pudesse intrometer-se em tal. Também o secretário-geral do PS, José Sócrates, já se pronunciou sobre a questão:"Acho que o doutor Pedro Santana Lopes, em primeiro lugar, devia estudar um pouco melhor os programas dos outros partidos. No programa do Partido Socialista está tudo claríssimo: nós não propomos o casamento entre homossexuais, nós não propomos a adopção de crianças por casais homossexuais".

Assim se desmentem os anúncios constantes de http://portugays.blogspot.com/: "Esperamos que o nosso lí­der José Sócrates não se deixe pressionar por estas opiniões retrógradas divulgadas pela Comunicação Social. E que ele, assim como nós, não tenha medo de erguer a bandeira da união homossexual. Numa acção conjunta com diversos outros blogues de Portugal, o "potugays" propõe uma grande mobilização pela causa homossexual. Encaminhem as vossas opiniões, sugestões e mensagens de apoio para que esta importante causa não passe despercebida do nosso futuro Primeiro-Ministro. Visite o link abaixo e deixe a sua mensagem: http://www.novasfronteiras.pt/index.php?headline=34&visual=1". Aliás, no mesmo blogue também se lamenta o seguinte: "o preconceito, a homofobia, chega-nos de todos os quadrantes polí­ticos, desrespeitando indiscriminadamente a orientação sexual dos candidatos à esquerda e à direita: tanto se enxovalha José Sócrates, num dia, como Paulo Portas, no dia seguinte. Não há vergonha! Não há direito!"

Espera-se, a toda a hora, que aqui chegue uma adequada tradução em calão de um movimento que vende camisolas, bonés, canecas e outros artefactos tolerantes, a fim de se denunciar o desviacionismo homofóbico do nosso trotskismo... Como dizia, há dias, Jerónimo de Sousa, o homem é o único animal que sabe fazer discursos que conseguem ocultar o verdadeiro pensamento ... de certos políticos.