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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

31.12.05

Mais um ano que se arranca da memória...

Eis mais um ano que se arranca das folhas do calendário, mais uma agenda que se começa, mais um desses infernos cheios de boas intenções, mais um purgatório de boas festas, mais não sei quantos concertos de música celestial, com muitos adeus até ao meu regresso, mas sem madrinhas de guerra nem minas que possam ser pisadas.

Mais um ano em que poucos reparam como os profissionais de sacristia perdem o sentido dos gestos, de tanto se turibularem uns aos outros, nesse sindicato das citações mútuas em que se transformou o mundo das academias, das editoras, dos jornais, das universidades e das grandes figuras da cultura que precisam de anúncios de página inteira num semanário político de fim-de-semana para mobilizarem os crentes para as respectivas conferências e os subsídios do Estado para as respectivas vaidades.

Mais um ano que se arranca da memória, sem que se perceba que a cultura dita de oposição, dos tempos da outra senhora, se transformou agora no novo Dantas do situacionismo, dado que a própria revolução passada se transformou em ideia de “marketing” e a defunta ideia de ruptura contestatária se banalizou de grisalha.

E tudo vai desabrochando nesta estufa de país, dominada pelos revolucionários frustrados da tradução em calão do Maio de 68, onde o máximo de polémica admitida pelas excitações se passa entre ex-maoístas, desde os que passaram para a direita dita moderada, que integra a procissão cavaquista, aos que se acolheram à sombra da esquerda-menos do soarismo, sempre temendo as denúncias dos antigos companheiros que se mantêm na vigilância da esquerda revolucionária, que agora se carimba como a frente de luta contra a globalização neo-liberal.

A pobreza de invocação de subsolos filosóficos que marca o vazio de pensamento em Portugal é equivalente à falta de horizonte do próprio debate político, nestas teias inquisitoriais, pidescas e vanguardistas de uma “intelligentzia” sem autenticidade.

Porque, nunca como hoje, mais distância houve entre aquilo que se proclama e aquilo que se pratica. Porque também nunca como hoje houve tanta desigualdade social, se analisarmos a coisa de forma global e tendo em vista as nossas possibilidades técnicas de luta contra a fome, a doença e a pobreza. Especialmente quando era possível transformarmos as bem-aventuranças num programa político mundialmente consensualizado, através de segmentos de governança mundial, dotada de instrumentos idênticos àqueles com que dotámos a capacidade de alguns Estados fazerem guerras, mesmo quando lhes chamam defesa nacional.

Poucos são os ex-marxistas-leninistas-estalinistas, pintados de revolucionários, que leram, no tempo certo de maturação, Arendt, Heidegger, Weber, Voegelin ou Strauss. Poucos são os que se aperceberam que o romantismo político ainda existe, como saudável reacção contra a decadência e como nostalgia dos que praticam a arte de análise da história do presente.

Poucos se aperceberam que somos quase todos modernos, que nos apercebemos do fim dos “anciens régimes”, do progresso do desencantamento do mundo, do fim do teológico-político, da passagem da “Gemeinschaft” para a “Gesellschaft”, como assinala o meu companheiro de ideias, idade e signo profissional, Luc Féry. Poucos se aperceberam de que quem nasceu quando se lançaram, no segundo pós-guerra, as bases do projecto europeu, pode ter uma perspectiva simultaneamente liberal e tradicionalista, capaz de superar a velha querela que está na base do presente pensamento único, a tal que se sucedeu ao fim da guerra fria mental que opunha o comunismo ao capitalismo.

Esses dois pensamentos únicos que se chocaram em sucessivas guerras por procuração sempre foram dois irmãos-inimigos que elevaram certa ocidentalidade de exportação colonizadora ao nível de dogma comunicacional. Especialmente quando se confrontaram os que procuravam uma revolução, entendida como forma de aceleração do processo histórico, através da construção de um pretenso homem novo, com os que se aproveitaram de uma pós-revolução capaz de adiar o processo.

Até porque esse confronto entre os saudosos da revolução perdida e os oportunistas defensores do modelo de uma revolução evitada, muitas vezes, esquece que eram da mesma família mental os chamados contra-revolucionários, aqueles que tentaram, nos anos do primeiro pós-guerra, a semente do totalitarismo nazi-fascista. E pouco distam do mesmo modelo de pensamento único os que persistem no pretenso legitimismo reaccionário, que pretende conservar o que estava do hierarquismo das ordens e dos corpos dos “anciens regimes”. Até porque estes métodos analíticos não conseguem compreender como na viragem do milénio se deu o regresso do religioso, nomeadamente com a explosão do fundamentalismo islâmico e com este interregno católico que tem acompanhado o chamado fim do comunismo.