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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

28.11.05

Falta ainda muita viagem por cumprir...



Falta ainda muita viagem por cumprir para que os homens de boa vontade possam passar as tormentas a alcançar a boa esperança de um caminho para a humanidade, quando o ser não for medido pelo ter e o amor vencer a guerra.

Quando tratarmos o outro como o próximo, o vizinho, o conterrâneo, o compatriota, o nosso irmão. Quando, sem negarmos as pequenas pátrias e as pátrias maiores, soubermos ascender à terra dos homens, à cosmopolis e pudermos dizer, como Pessoa, tudo pela humanidade, nada contra a nação, mas desde que cada nação seja entendida como caminho para uma super-nação futura. Quando vencermos os impérios que nos invadem, de forma visível e invisível, pelo mercado ou pela colonização cultural. Quando, de mãos livres, pudermos ter fé no homem, no seu destino ou no seu transcendente. Quando o abraço armilar nos voltar a aquecer.



Não, ainda vivemos nas guerras civis ideológicas, nas guerras frias culturais, nas guerrazinhas de homenzinhos, desses que são marcados pela vontade de poder, nesta anarquia mansa que, subterraneamente, nos amarfanha pelas longas teias da cobardia, gerando as sucessivas ditaduras do situacionismo e da incompetência.

Insurge-te contra este mais do mesmo, desobedece aos compadres e comadres desta partidocracia, não admitas que, no espaço público, em nomes das razões de Estado, se pratique aquilo que não admites em tua casa, na tua família, na tua rua, na tua terra. Volta a ser um homem livre, não tenhas medo!



Mas o tempo não está para filosofices ou politiqueirices, mas para sentir os pormenores da paisagem. Ter a liberdade de um pássaro peregrinando a paisagem, acariciar o chão de caruma e percorrer o espaço destas matas que nos restam.

Porque apetece continuar feliz e poder olhar os outros, olhos nos olhos, sem o calculismo dos que encenam aquelas parecenças que destroem as chamadas relações sociais. Apetece esta saudade de mar, as ondas pequenas do bom tempo, a limpeza das areias infinitas e os passeios na maré baixa, de falésia a falésia, diante de quem sou.



Que sejas sempre um homem livre, desses que cumprem o dever de bons filhos de seus pais honrados. Não temas alinhar com a contra-corrente e até com o contra-poder. Tem a coragem de ser minoria, não temas optar por aquela conduta que não está dependente do aleatório de uma escolha arbitral ou de um resultado eleitoral, onde domina a lógica do jogo de fortuna e de azar onde pode não ter razão quem vence. Pode ter razão quem perde. Há homens de sucesso que não sabem onde fica o seu próprio norte.

Prefere que os outros te reconheçam como daqueles vencidos da vida que nunca cederam a respectiva rebeldia em troca de um prato de lentilhas, oferecido pelos poderes estabelecidos. Prefere dar-te àqueles projectos que a maioria dos que dizem pensar segundo aquelas modas que passam de moda sempre consideraram coisas falhadas. Não te disperses em pequenas intenções plenas de servilismo de que o inferno das frustrações continua cheio. Não te percas nos corredores frequentados por essa sub-gente que se dilui pelos meandros das sub-instituições.

Não queiras servir ilusórios bobos de reizinhos sem reinos. Que escrevas o que pensas na altura certa, para poderes seguir livre o teu próprio sonho. Vale mais olhar o sol de frente, mesmo que se morra em combate ou que seja condenado por fuzilamento de ódios.

Eu, pelo menos, sem saber tudo o que quero, sei perfeitamente o que não quero e sei que tentarei não pisar terrenos armadilhados pelas minas da subserviência, por todas essas procuras de uma qualquer prebenda dada pela cunha ou pelas habituais manigâncias politiqueiras ou eclesiásticas, dessas alfurjas, lojecas e pequenas cortes de um mundo que já não há.

Deixa algumas sementes de beleza e muito amor por cumprir. Que, de ti, ninguém possa dizer que, um dia, se vendeu pela posta ou pela comenda. Sê livre!