a Sobre o tempo que passa: Nunca digas nunca dentro de ti

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

29.7.05

Nunca digas nunca dentro de ti



Custa, por vezes, sentir que o destino rodopia em encontros e desencontros, mas quando as circunstâncias nos lançam o desafio vale a pena a ousadia, olharmos quem somos, cá por dentro, e seguir viagem, sentindo o sol de frente. Assim foi, nos meandros do tempo que passa, nas breves encruzilhadas de um naufrágio, nesse acaso procurado, onde a palavra voltou a ter sentido, para que as noites não custassem a sofrer e as mãos pudessem refazer o tempo que há-de ser.

Se navegar é preciso, viver também é preciso, seguindo a rota que nos dá o mais além de que somos feito e cumprindo o sonho de vencermos a dor de não acharmos quem na verdade somos. Nunca digas nunca dentro de ti. Deixa que as mãos procurem o silêncio da manhã e que os gestos voltem a ter sentido. Sobretudo, se tiveres as mãos livres e teus olhos de menino conseguirem alumiar as sombras da procura. Nunca digas nunca dentro de ti.



Não digas proibidas, das palavras que te dão mais vida. Não digas proibidas, das coisas mais íntimas que te sustentam. Dos segredos mais profundos dos teus olhos vivos, das madrugadas prometidas que te dão sustento. E assim vais semeando memórias, regressos, sonhos e comprimindo as angústias dos que dizem que os outros não gostem de gente que se mostre feliz, porque aos outros apenas apetece gente que sofre, dialogando em mágoas e revolta.

Porque há sempre dias de medo, quando o lado negro nos ameaça, parecendo vencer a serenidade e quando a revolta não cede à esperança. Quando as unhas ácidas dos limites profanados rasgam a carne do dever. Momentos em que tudo parece volver aos tempos de um conzento amedrontador. Quando o azul se suspende e o verde dos campos fica sujo de névoas e trevas, nessas penumbras que apetece esquecer.



Hoje, não. Olho ao longe quem sou e voltando ao signo que me deu distância, estendo os braços ao sublime que se vai cumprindo. Volto a ser quem sempre fui, pedaço de mar por cumprir, longo silêncio crescendo nas palavras que me escrevem, neste pedaço de um infinito em que me perco.