a Sobre o tempo que passa: julho 2005

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

30.7.05

Momentos I. Há um tempo de sofrer sem navegar



Aqui. Sem ler sequer as novas que fazem as parangonas da semana. Não li. Não quero ler. Estou aqui, neste cair de mim, preso a uma nostalgia que nem sequer sei identificar. Temo não ter tempo e nem ter lugar, onde guardar quem sou, este quem sou que procura o tempo que não tem, o espaço que não acha, o resto de um tempo que será, o resto de um espaço por achar.



Estou na baía, como barco parado à espera de vento. Tenho as velas presas dentro de mim. Sem cordas que me livrem do que temo. Que falta sinal que me faça chegar à margem, falta quem sonho, um esboço de viagem, um breve rasto que atravesse o espaço que me dê pedra onde pousar.



Há um tempo de dor física que me penetra e me prende ao lado sombrio que me faz a pele tisnada de sofrer cansaço. Há um tempo de penumbra, a rigidez de uma ruga caindo em mim, como se fosse uma lágrima contida. Uma funda revolta de apetecer sonhar, um pedaço de mar que me faça vencer este não ser quem sou.



Há um tempo de sofrer sem navegar. Sentado na pedra, cercado de mar, sem asas que esvoacem em busca do sonho.



Sei que dói quem sou dentro de mim, resto de um sonho por cumprir, espaço de um mar por descobrir, sinal da viagem de quem sou. Há um sítio onde posso semear quem sou, um sítio de ser livre, de ser sonho, de ser viagem por cumprir, o tempo todo que me dê tempo. Nem que seja, breve espaço de passeio, em noite de luar, sem vento. Na pátria prometida que tenho dentro de mim.



Apetece largar de mim a pedra pesada que me vai doendo, nesta dor de não doer o que me faz doer, quando apetecia dizer o que nem sequer sei que tenho para dizer.

A esquizofrénica procura do presidente-rei e a (falta de) ética republicana




Soares e Cavaco são o regresso a um mitificado passado, a invocação de dois dos principais situacionismos que marcaram a nossa pós-revolução. A procura da segurança sistémica, ao exigir este conforto pela protecção do presente, recorrendo-se aos pais do modelo político que temos, constitui uma ilusória droga que revela tanto a impotência das presentes gerações como a falta de criatividade dos filhos do soarismo e do cavaquismo, confirmando a estagnação em que o regime se enreda. E tudo poderá explodir se não ganharmos consciência da circunstância de poder chegar, de um momento para o outro, o Marcello Caetano deste regime envelhecido.

Aliás, ninguém de bom senso acredita que o actual PSD possa assumir-e como alternativa credível ao presente governo. Da mesma forma, também ninguém vislumbra a hipótese do desencadear de uma crise política que crie um ambiente de pré-golpe de Estado, coisa que é, de facto, tecnicamente impossível. O comando político e social do país já não cabe numa "Chaimite", dado que atingimos níveis de pluralismo e de sociedade aberta que nos tornam imunes ao golpe, apesar de continuarmos vulneráveis à putrefacção.



As próprias análises políticas que acompanham os cenários presidenciáveis, inventariando-se os prós e contras dos perfis intervencionistas dos principais candidatos, reflectem o conformismo comentarista. Até se prendeu o imaginador-mor, Marcelo Rebelo de Sousa, o antigo criador de factos políticos, na gaiola do telejornal da RTP.

Com efeito, o intervencionismo do velho macro-economista não surtiria efeito nas presentes circunstâncias, porque o Palácio de Belém não pode transformar-se num super-ministério das finanças. Da mesma maneira, soaria a ridículo que o mesmo local presidencial pudesse volver-se em Palácio das Necessidades, no caso de vencer o antigo caixeiro-viajante da república, até porque já se foi o estrondo que marcou o fim da guerra fria e morreu Álvaro Cunhal.



Ninguém se banha duas vezes nas águas do mesmo rio e um qualquer velho não pode voltar a ser novo, mesmo que recentes químicos nos dêem a ilusão alquímica da descoberta do elixir da vida eterna. Por isso, bem podemos estar a assistir a delírios típicos das noites de Verão, pelo que, depois das reflexões de Agosto, talvez se chegue à "rentrée" de forma mais friorenta.

Todos sabem que o necessário "indisciplinador colectivo" capaz de afastar a presente estagnação não virá de dentro para fora. Porque os factores nacionais de poder, que a governação pode gerir e mobilizar hierarquicamente, já não são suficientes para um intervencionismo capaz de debelar a crise que nos ameaça.



Já não somos um país independente à maneira salazarista. E a independência que nos resta se resume à sucessiva gestão de dependências a que livremente nos fomos prendendo, tanto a nível da transferência de soberania da integração europeia, como da interdependência da globalização.

O sonhado intervencionismo presidencial não passa de uma ilusão. É feito de imagens assentes num passado que já não há, quando outras eram as circunstâncias. Daí que o regresso de personalidades históricas, ligadas ao momento genético do presente regime, apenas conforme a presente esquizofrenia colectiva. E que possa repetir-se a tal estúpida personalização do poder que nos faça depender de uma constipação mal tratada.

Tanto são graves soarismos ou cavaquismos sem Soares e sem Cavaco, respectivamente, como Soares ou Cavaco, feito um deles presidente, também sem soaristas ou cavaquistas. O aqui e agora é diferente no "tempo" de interregno em que estamos embrenhados e no "espaço" das presentes circunstâncias geopolíticas que levaram os principais presidenciáveis a ficarem assinaladas como figuras notáveis da história política política portuguesa.

Transformar as eleições presidenciais num passeio que a pátria portuguesa provindencia para o Olimpo do agradecimento dos homens comuns, revela uma falha dos nossos constituintes que deveriam ter previsto a hipótese de um colégio presidencial de muitos "honoris causa". O que evitaria o perigo do estabelecimento de um regime monárquico à maneira vaticana, com o eleito a receber mandato vitalício de presidente-rei. Assim se evitariam os desperdícios de tantas pré-campanhas, campanhas e actos eleitorais, bem como algumas fraudes face ao sentido da proclamada ética republicana.

29.7.05

Nunca digas nunca dentro de ti



Custa, por vezes, sentir que o destino rodopia em encontros e desencontros, mas quando as circunstâncias nos lançam o desafio vale a pena a ousadia, olharmos quem somos, cá por dentro, e seguir viagem, sentindo o sol de frente. Assim foi, nos meandros do tempo que passa, nas breves encruzilhadas de um naufrágio, nesse acaso procurado, onde a palavra voltou a ter sentido, para que as noites não custassem a sofrer e as mãos pudessem refazer o tempo que há-de ser.

Se navegar é preciso, viver também é preciso, seguindo a rota que nos dá o mais além de que somos feito e cumprindo o sonho de vencermos a dor de não acharmos quem na verdade somos. Nunca digas nunca dentro de ti. Deixa que as mãos procurem o silêncio da manhã e que os gestos voltem a ter sentido. Sobretudo, se tiveres as mãos livres e teus olhos de menino conseguirem alumiar as sombras da procura. Nunca digas nunca dentro de ti.



Não digas proibidas, das palavras que te dão mais vida. Não digas proibidas, das coisas mais íntimas que te sustentam. Dos segredos mais profundos dos teus olhos vivos, das madrugadas prometidas que te dão sustento. E assim vais semeando memórias, regressos, sonhos e comprimindo as angústias dos que dizem que os outros não gostem de gente que se mostre feliz, porque aos outros apenas apetece gente que sofre, dialogando em mágoas e revolta.

Porque há sempre dias de medo, quando o lado negro nos ameaça, parecendo vencer a serenidade e quando a revolta não cede à esperança. Quando as unhas ácidas dos limites profanados rasgam a carne do dever. Momentos em que tudo parece volver aos tempos de um conzento amedrontador. Quando o azul se suspende e o verde dos campos fica sujo de névoas e trevas, nessas penumbras que apetece esquecer.



Hoje, não. Olho ao longe quem sou e voltando ao signo que me deu distância, estendo os braços ao sublime que se vai cumprindo. Volto a ser quem sempre fui, pedaço de mar por cumprir, longo silêncio crescendo nas palavras que me escrevem, neste pedaço de um infinito em que me perco.

Leituras de férias III. Pensar é resistir...



Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de ciência cuja ciência é só classificar, ignoram, em geral, que o classificável é infinito e portanto se não pode classificar


(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, & 102)

Em Portugal, dizer decadência é verificarmos como a imagem do grande intelectual, do consagrado professor ou do homem de insigne cultura depende, quase sempre da forma como se conseguem alcançar as alavancas da hierarquia burocrática, através de uma adeuada gestão estratégica da imagem. Com efeito, a maioria dos propagadores da falsa excelência não passa de uma pequena casta de impotentes que se alimenta de hipocrisia.

Há na base das elites uma classe inferior entorpecida, indiferente ou essencialmente recalcitrante

(George Steiner)


O nosso politicamente correcto no plano cultural é presa fácil de um conquistador que queira assumir-se como conselheiro de príncipe e que consiga pela falta de vergonha, de coerência e de autenticidade, subir os degraus que o façam chegar a homem de Corte, mesmo que, por dentro, não passe de um bobo da mesma.



O intelectual, aquele que é inebriado pelas ideias é, como o artista e o filósofo, embora em grau menos, alguém que nasceu - e não que foi feito... Ele não tem outra escolha, a não ser a de ser ele mesmo ou a de se trair

(George Steiner)

Pensar é resistir, é ter a coragem de sermos minoria, assumindo a atitude daquele que, para estar de acordo consigo mesmo, tem, por vezes, que estar em desacordo com todos os outros, não para "épater le bourgeois", mas para servir a comunidade, mesmo que a comunidade o não reconheça no seu próprio tempo de vida.



A vida é para nós o que concebemos nela. Para o rústico cujo campo próprio lhe é tudo, esse campo é um império. Para o César cujo império lhe é ainda pouco, esse império é um campo. O pobre possui um império; o grande possui um campo

(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, & 102)

Sabe bem podermos subir ao nível das discussões filosóficas assentes na mera observação quotidiana, sem qualquer pretensiosismo de academia ou de salão, nesse falar assente na reflectida experiência do bom senso. Talvez o fundamento da moral seja a coerência. Talvez o fundamento da sociabilidade seja a igualdade. E a melhor plataforma de identidade talvez assente em gestos de ternura. Quando a corrente que bilateralmente nos enlaça procura apetecer que tudo seja para sempre.



Sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos

(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, & 102)

Entre o que vou sentindo e o intelectualismo disfarçado em emoção, que se expressa na obsidiante viagem pessoana, acaba por existir um profundo contraste. Estou bem longe da sensibilidade de "Orpheu" ou do automatismo da "Ode Marítima". Sinto-me do partido da "Presença" e da "Távola Redonda", desse lirismo lusitano, onde o "humor merancórico" vira saudade e pode ser temperado pela força da esperança e pela vivência do amor, por essa maré viva que nos deixa longa a praia mar e por onde podemos peregrinar em longos passeios, todos os dias.

A mercearia lusitana, campanários e negocismos



As grandes épocas da história são aquelas em que os povos lutaram pela liberdade, não aquelas em que eles a obtiveram


(Fernando Pessoa)

A pátria nunca estará em perigo porque não passamos de mera subsecção de um armazém maior, onde tudo depende dos agentes da contabilidade e da segurança, nesta Europa e nesta república de uns portugueses crescentemente despolitizados, mas que tem de concorrer com outras entidades políticas onde, além de haver autonomia da sociedade civil, há também indivíduos autónomos que já se habituaram à edição e cumprimento das próprias normas que editam.



Todo o combate contra a opressão verdadeira é um combate pela liberdade; ao passo que um combate pela opressão suposta é apenas um combate pela indisciplina

(Fernando Pessoa)

O sentido cívico da república não aguenta este vazio de futuro e esta falta de esperança que nos vai desmobilizando. Mas avizinha-se uma mais grave crise de confiança nas instituições públicas, fragmentadas que estão pelos pequenos interesses de campanário e negocismo, nestas trocas e baldrocas de corrupção e nepotismo, onde os ricos são cada vez menos e cada vez mais ricos e os pobres cada vez em maior número e cada vez mais pobres.



Haverá essa marcha, conseguida a liberdade real, para a fictícia, porque, tornada positiva a ideia de liberdade, ela breve se apresenta como fim, em vez de meio

(Fernando Pessoa)

Vale-nos o céu azul e o sol a rodos esta suave sombra dos pinhais, em tempo de canícula, bem como aptecerem longos passeios à beira mar. Só que já poucos parecem acreditar nos bailados discursivos.

A tripa do sistema e os maquiavéis de cordel




Não há nada menos adequado à verdadeira política do que os actores políticos do sindicato dos políticos profissionais que vamos tendo, ou que o querem ser, de acordo com as presentes regras do jogo, essa gente fabricada nas jotas que tem como objectivo o aparecer sempre no palco do mediático, desde a campanha de feira aos fantásticos minutos de um telejornal que lhe dê a ilusão de fama.

Tal tribo, viciada no aparecer, de tanto aparecimento ou procura de aparecimento, passou a ser o seu próprio parecer, deixando de efectivamente ser. Porque mesmo quando resiste em esporádicos assomos de autenticidade, a droga mediacrática que a transformou em tripa do sistema, obriga-a a renunciar ao próprio sentido moral último que a livraria do do remorso.



Mesmo quando tem momentos de madura reflexão, que a poderiam levar ao justo exílio eterno, ei-la que, contabilizando a fama, chega à conclusão que, neste mundo cão da politiqueirice circense, parar é morrer.

Eles são eternas vozes que ecoam e em quem já ninguém confia. A não ser um grupo de dois ou três fiéis, iguais aos ditos, com quem eles vão contratando a ilusão de serem e não serem, nesse circuito infernal dos maquiavéis de cordel, que passam da imagem à sondagem e acabam sempre na sacanagem.



E a pobre democracia se vai assim perdendo nestas personalizações mediáticas do sobe e desce, onde entram líderes e ex-líderes, autarcas e autarcáveis, presidenciais e presidenciáveis, bem como tartufos e pompadours. É natural que este conúbio de politiqueiros e jornaleiros, fadistas, empresários e vigaristas acabe por gerar o seu próprio grão-mestre da sedução, num universo onde também já circulam magistrados, assessores e malabaristas. Para que o sistema continue e esperança definhe.

A velha terceira república, nascida do antifascismo, feita de antifascismo, respirando antifascismo por todos os poros, mesmo que tenha a colaboração de ministros e secretários do fascismo, lá vai cantando e rindo, de vitória em vitória, até à derrota final. No fundo, no fundo, poucos dariam a vida para defender a dita. Porque ela corre o risco de perder sentido e de apenas resistir porque não tem alternativa.