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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

27.2.05

Do "enfant terrible" ao senador bem-comportadinho



O regresso de Marcelo teve um não sei quê de "déjà vu", no enfandonho do previsível, dado que o velho "enfant terrible" perdeu muito daquele picante que era poder criticar as traições dos seus sucessores, de Barroso a Portas, ou as do seu antigo aliado, Portas. Agora, na circunspecta televisão pública, perante a incógnita de Sócrates, tornou-se numa espécie de aluno bem comportado, leccionando, de forma ensaiada, o "como reconquistar o centro perdido". Depois, não se percebe como é que uma jornalista consagrada aceita fingir que está a entrevistar o Professor, quando apenas lhe serve de simpática caixa de ressonância. Desconfio, pelo andar desta carruagem, que Sócrates ainda vai pedir ao notável catedrático para este aceitar integrar o grupo de senadores da República que vai escrever o programa do grande centro consensual. "Boa noite! Até para a semana!".

O presente estado de graça pós-pantanal corre o risco de se transformar numa mistura da governação dos bloquistas centrais com os bloqueiros da ideologia e que se atinja aquele estado de serôdia análise, segundo a qual só seremos bons sociais-democratas aos cinquenta anos se tivermos sido entusiásticos estalinistas, ou trotskistas, aos vinte. Uma análise bem típica dos oitenta anos de Soares que ainda não disse que também à direita se tem de começar por ser nazi para atingirmos a moderação do desencanto no centro-direita. Por outras palavras, entrar na maturidade equivale ao desencanto do fim das ideologias e à esperança no livro de cheques, através da conquista de um lugar ao sol no esquema do carreirismo.

Assim, é condição essencial não sermos carne nem peixe andando sempre cautelosamente nos trilhos do nem tanto ao mar, nem tanto à terra, para, muito moderadamente, podermos ser arrastados pelo vento novo e seguirmos de feição as ondas da moda, nessa mecânica mistura que é dada pelos impulsos da extrema-direita e da extrema-esquerda.

De facto, quando se considera que a moderação é uma simples consequência mecânica de impulsos externnos, onde os solavancos, que são dados pela soma do mais um com o menos um, geram um lugar passivamente geométrico, apenas abdicamos das convicções próprias de quem devia ser minimamente autónomo. Só que, deste modo, podemos correr o risco da servidão, desse que gosta de ser mandado, colonizado ou escravizado. E pode ser que nos aconteça uma dessas tempestades imprevistas que nos venha a dizer que o desastre antes de o ser já o era.