a Sobre o tempo que passa: fevereiro 2005

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

28.2.05

Heresia por heresia, prefiro a Samaritana ao Dan Brown...

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Graças à minha filha Filipa, e já depois das eleições, também eu li o livro de Dan Brown, sobre o "Código Da Vinci", num empréstimo da biblioteca da minha autarquia. Sem preconceitos e sem prévia leitura de recensões, li a coisa de um fôlego, como se estivesse a ver um filme, até porque o texto quase parece um guião cinematográfico. E cheguei à conclusão que tudo se parece muito com o fado da "Samaritana", a tal plebeia que seduziu Jesus. Só depois ouvi, vi e li o Umberto Eco a ter a opinião que subscrevo sobre a matéria: a história de Maria Madalena e do Graal fazem parte das deliciosas patranhas do nosso imaginário, como a Cinderela ou o Pinóquio.

Retoma-se, quase meio século depois, o regime do "best seller" de Pauwels e Bergier, Le matin des magiciens, Paris, Gallimard, 1960, agora num regresso ao anticongreganismo primário, onde, em vez dos jesuítas, surge o "Opus Dei", vulgarizando-se ridiculamente questões maçónicas, gnósticas e panteístas. Reduzir ao ritmo cinematográfico temas como os do simbolismo e do esoterismo, atacar o catolicismo e a maçonaria, pela interpretação das lendas merovíngias, é brincar com o fogo sagrado. Especialmente neste Ocidente onde as bases esotéricas atiram a memória pré-cristã e as heresias medievais para a zona do sincrético das seitas e das macacadas das sociedades secretas, onde, afinal, algumas multinacionais livreiras espetam as garras do negocismo, explorando as nebulosas que circundam a procura da verdade, sem se ir ao fundo das coisas.

Acaba por apelar-se ao vazio da procura pessoal, obrigando muitos a acolherem-se à sombra de explicações transpersonalistas e fazendo dissolver as autonomias individuais no colectivismo moral das seitas e nesse jogo entre o exotérico e o esotérico, de modo que a verdade acaba por dissolver-se.



Importa salientar que quando alguém procura atingir o bem colectivo através do mal individual, em nome da Razão de Estado, da Razão de Seita ou da Razão de Igreja, está a matar-se a si mesmo, ainda que adopte aquela literatura de justificação do realismo político. E todas estas legiões tanto geram os Buiças que matam os reis como promovem os assassinos de Delgado que pensavam estar ao serviço de Salazar. A maçonaria permitiu o 28 de Maio de 1926 quando deixou que a formiga branca entrasse em autogestão. O Estado Novo autorizou o 25 de Abril quando criou condições para que matassem o general sem medo.

Há muitas boas e higiénicas instituições que invocam fins superiores, incluindo o divino, enquanto os respectivos jagunços, inflitrados nos aparelhos do Estado de Direito, brincam ao maquiavelismo, maculando a eventual espiritualidade com que vão recrutando neófitos. E o estampido das crenças, com que muitos vão permitindo as conversões, pode levar a um processo de crescente relativismo e cepticismo, onde acaba por preponderar o mero jogo das bruxarias.



O Senhor Dan Brown nada diz da Ordem de Cristo, do Infante D. Henrique, das caravelas, da política de sigilo e da armilar, nessa viagem, onde, pelo pragamatismo e aventura, os do Velho Mundo criaram o Novo Mundo, onde recriaram muito do espaço sincrético onde assentou o primitivo cristianismo.

Continuo a preferir Umberto Eco e "O Nome da Rosa". Ficamos mais cavaleiros andantes, mais próximos do saber poético, mais amantes do mistério, mais cultivadores do transcendente...

O enjoado choradinho do interior, visto por um capitaleiro...

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Se concordamos com as denúncias de corrupção lançadas pelo Professor Saldanha Sanches, se louvamos o respectivo combate cívico nesse processo, rejeitamos, em absoluto, a sua conversão ao capitaleirismo, quando considera fundamental que o primeiro-ministro «atire o dossier «interior do país» para o lixo. Esse conceito foi usado na campanha. Agora esqueça isso, urbanize-se. Pense no litoral, que paga os impostos e que arrasta o País para o crescimento. Aliás, porque já não há interior. Hoje, Vila Real está a uma hora e meia do Porto». Porque é preciso acabar com as «demagogias ridículas» das políticas direccionadas para o desenvolvimento do interior, diz o fiscalista: «Esse choradinho do interior é a coisa mais enjoativa que se pode imaginar».

O Professor Sanches quer que o litoral arraste o interior para um crescimento que nos pode levar directamente para o abismo oceânico no preciso dia em que faleceram em Mortágua quatro bombeiros da minha terra, quando combatiam um incêndio provocado pelos erros de planeamento florestal pela indústria da pasta do papel. O litoral paga com impostos. O interior paga com a vida.

Logo, se o provinciano Sócrates cai no conselho fiscalista de atirar o interior para o lixo, nomeadamente através do método da co-incineração, eliminando a demagogia ridícula da luta contra a desertificação e pelo desenvolvimento sustentável, poderíamos elevar ao máximo esse modelo capitaleiro, sugerindo outras medidas bem mais radicais:

Despovoamento imediato das ilhas do Corvo e das Flores, com instalação dos respectivos habitantes no Hotel Ritz de Lisboa:

Instalação de milhares de discotecas em todas as praias e falésias do litoral e terraplanagem imediata de todo o país interior, de maneira a podermos ter longos parques de estacionamento em espinha para uso dos europeus que pagam impostos;

Solicitação à NATO quanto à cedência gratuita de armas de destruição massificada, bombas napalm e pequenas armas atómicas de eficácia táctica que arrasem aldeias, vilas e cidades que não têm pessoas susceptíveis de pagamento de impostos;

Colocação em leilão internacional do país interior terraplanado, a fim de se instalarem em adequados campos de concentração cerca de dez milhões de párias de todo o mundo, com adequada vigilância das nossas forças armadas.

A necessária revolução mental...na economia

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As colunas da economia são redondas ou quadradas?

A propósito de uma crítica que aqui fiz aos consultores económicos do centrão dos instalados, recebi de um leitor o seguinte desabafo que aqui vos deixo. Não indico o nome do autor, que desconheço, por não lhe ter pedido autorização prévia, mas se ele ma comunicar, acabarei com o anonimato:

Trabalho por conta própria desde 1994 a prestar serviços de gestão às pequenas e médias empresas, vejo empresas de sucesso que em 2004 continuam a crescer aos 20% ao ano (para exportação), vejo empresas que foram capazes de avançar para produtos de maior valor acrescentado e de um 2003 com as linhas de fabrico às moscas passaram para um 2005 a ter de fazer horas extras na produção para dar conta das encomendas.

O que é que distingue essas empresas das outras? Terem uma estratégia para o negócio!!! Acredita que a maior parte das pequenas empresas industriais não têm actividade comercial... esperam que os clientes apareçam na fábrica para comprar!!! Acredita que a maior parte das pequenas empresas industriais nunca seleccionou clientes-alvo, em torno dos quais desenhe uma proposta de valor? Acredita que a maior parte das pequenas empresas industriais não tem, não desenhou uma estratégia? Acredita que a maior parte das empresas industriais não tem contabilidade analítica e logo não tem noção adequada de quais os produtos que dão margem positiva e quais os produtos que devem ser eliminados pois só dão trabalho e prejuízo?

Acredita que a maior parte das empresas industriais dá aos seus colaboradores a formação que é financiada e não a formação que interessa (o que interessa um curso para operadores de máquinas de injecção de plásticos onde um universitário lhes vai falar da reologia de polímeros e do ponto de transição vítreo)? Acredita que a maior parte dos colaboradores das empresas industriais não quer ter formação (se calhar até têm razão, com um historial de ouvirem teóricos o que seria de esperar? Acredita que a maior parte dos cursos de formação de formadores em Portugal não falam, não abordam a temática da formação de adultos, continuam na pedagogia e desconhecem a andragogia?

Por um lado estou apreensivo face ao futuro, pois são estas pequenas e médias empresas as que podem gerar riqueza distribuída pelo país e criar dinamismo, por outro tenho esperança, porque o pouco que se faça terá logo resultados positivos uma vez que partimos de uma posição tão atrasada.

Mais importante do que aprender inglês, as escolas deveriam educar os alunos para o empreendorismo, um universitário acaba um curso e procura um emprego... porque não equaciona criar um posto de trabalho?

Não pensemos que o tempo que vivemos é único e específico de Portugal, países como a Coreia do Sul e o México estão nas mesmas circunstâncias, países de mão de obra barata que estão a sentir o impacte da China (aliás não é só a China, são mais de 3 mil milhões de pessoas - mais de metade da população mundial - que estavam afastados da cadeia de valor e agoram apareceram muito justamente a exigir o seu lugar) e a receita, é a criação de mais valor acrescentado, para isso as empresas têm de primeiro escolher a quem querem servir, para os conhecer melhor e assim apresentar-lhes um produto mais adequado às suas necessidades.

O problema é que poucos patrões estão dispostos a dar o salto mental necessário para esta mudança de paradigma. Algures nos anos 80 do século passado aconteceu uma coisa que nunca tinha acontecido desde a Revolução Industrial, a oferta, a capacidade de produção superou a procura, a capacidade de adquirir... e isso mudou tudo, o poder deixou de estar na mão do fabricante e passou a estar na carteira do consumidor. A maior parte das empresas em Portugal, e diga-se a verdade, a quase totalidade dos políticos, ainda não compreendeu o alcance desta mudança, tal como o senhor Ernâni Lopes.

Ubuntu...dignidade! Parabéns, Jorge!

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Transcrevemos relato da Lusa:

A Guiné-Bissau volta a contar, a partir de hoje, com uma nova revista sócio-cultural, a"Ubuntu", fruto de um projecto idealizado por um grupo de jovens quadros guineenses recentemente regressado ao país. A revista, de 60 páginas, é dirigida por Jorge Lopes Queta, quadro do Fundodas Nações Unidas para a Infância (UNICEF) em Bissau e mestrando emRelações Internacionais, e constitui um espaço de reflexão em que sãoabordados todos os temas, "sem complexos". Em declarações à Agência Lusa, Jorge Lopes Queta indicou que aperiodicidade da revista, lançada sábado à noite em Bissau durante a 14ªedição das "Noites Culturais" promovidas pela Associação Ubuntu, "será inicialmente anual, embora haja planos para que se torne ainda este anosemestral ou mesmo trimestral".


O "Ubuntu", palavra do dialecto sul-africano Zulu que significa "dignidade"ou "respeito", conta com seis secções distintas e pretende apresentar,segundo o seu director, uma nova abordagem dos assuntos dos espaçoslusófonos, maioritariamente ligados à Guiné- Bissau é à regiãooeste-africana." Essa abordagem visa alcançar uma nova visão das questões africanas,desprovida de complexos, inovadora e objectiva, e que deverá caracterizar amudança de milénio", sublinhou Jorge Lopes Queta. A este facto não é alheio a juventude dos seus responsáveis, pois são todosda geração pós-independência e que tiveram oportunidade de estudar no estrangeiro, nomeadamente em Portugal.

Nesse sentido, esclareceu o director, esta nova visão tem também porobjectivo estimular o debate público de temas conjunturais, tendo em contao "público-alvo" da revista: os diversos actores sociais, comoinvestigadores, universitários, lideranças nacionais e comunitárias,responsáveis da sociedade civil e políticos. O conceito Ubuntu, que tem na sua génese o lema "Eu sou porque nós somos. Nós somos porque tu és. Nós sabemos somente que somos porque o outro é.", é um princípio organizacional da consciência africana." Define a proeminência dos interesses da comunidade em detrimento doindividual e a obrigação do indivíduo em partilhar o que é pessoal com acomunidade", explicou Jorge Lopes Queta.

O número 1 da revista, que não lançou o tradicional número zero, consagraum dossier de 10 páginas sobre a participação cívica em África, bem comovários artigos de opinião sobre os mais variados domínios, entre eles ospolítico, económico, social e cultural. O conceito de "Ubuntu" é, contudo, mais lato, explicou Jorge Lopes Queta,que adiantou que a revista é apenas um vector do projecto, que se associaclaramente às actividades de índole cultural.

Tudo começou em Lisboa, quando, em 1997, um grupo de jovens estudantes universitários africanos criou a Associação Africana Ubuntu com o objectivode editar uma revista e desenvolver projectos humanitários na área daEducação.Além de Jorge Lopes Queta, envolveram-se no projecto a sua irmã, EuniceQueta, hoje advogada residente em Lisboa, e Rómulo Pires, licenciado emGestão Bancária e que estagia actualmente na sede do Banco Central dos Estados da África Ocidental (BCEAO), em Dacar. Findas as licenciaturas e com o consequente regresso de muitos dos estudantes a Bissau, iniciou-se uma série de actividades culturais que, noprincípio, tiveram pouca recepção local, pois a divulgação era praticamentenula e a resistência dos guineenses à novidade era grande.

Jorge Lopes Queta lembrou que, no início, as "noites culturais" nãopassavam de um "mero encontro de amigos", na sua maioria estrangeiros, eque, com o tempo, a iniciativa ganhou adeptos, tendo-se já transformado num "acontecimento cultural por excelência" no país. As "noites culturais", que já vão na 14ª edição, congregam uma série deiniciativas, pois é demonstrado todo o potencial cultural que sedesenvolve na Guiné-Bissau, onde a tradição, nomeadamente na dança, é oprato forte. O evento serve para os que músicos menos conhecidos apresentem as suascanções, para os pintores exibirem as suas obras, para os escritoresdivulgarem os seus livros, para os actores levarem a cena as suas peças deteatro, para todos mostrarem a sua arte.

Ponto de referência para a cultura guineense, a associação conta com poucos apoios quer estatais quer da classe empresarial e, como instituição semfins lucrativos, os poucos lucros revertem para um fundo destinado apromover e realizar as "Noites Culturais", que Jorge Lopes Queta tem conseguido manter com uma periodicidade irregular. Em relação ao futuro, o director da "Ubuntu" pretende obter uma estrutura"talvez um pouco mais profissionalizada", para que se possa manter quer arevista, quer as "Noites Culturais". No entanto, o projecto, adiantou, é muito mais vasto, pretendendo-se, apartir de agora, criar um espaço e um roteiro cultural, um programaradiofónico, apoiar e desenvolver acções para a defesa e promoção dacultura e promover a participação cívica e os valores da cidadania, democracia e liberdade junto da sociedade.

Com o surgimento do "Ubuntu", é relançada na Guiné-Bissau a ideia de umarevista sócio-cultural, após a "Tcholona", um magazine lançado em 1997 eque, por falta de financiamento, terminou após o sexto número. A "Tcholona", palavra crioula que significa "dar uma dica" foi criada em1995 pelo Grupo de Expressão Cultural (GREC), que se dedicava a divulgar epromover as artes e letras guineenses, entretanto desactivado. Nos últimos anos da década de 70, o então único jornal da Guiné-Bissau, o Nô Pintcha, publicou, embora de forma irregular, um suplemento literário intitulado "Bambaran", em que havia a preocupação de promover a cultura donovo Estado independente.


José Sousa Dias, da Agência Lusa Bissau, 27 Fev (Lusa) -

27.2.05

Do "enfant terrible" ao senador bem-comportadinho



O regresso de Marcelo teve um não sei quê de "déjà vu", no enfandonho do previsível, dado que o velho "enfant terrible" perdeu muito daquele picante que era poder criticar as traições dos seus sucessores, de Barroso a Portas, ou as do seu antigo aliado, Portas. Agora, na circunspecta televisão pública, perante a incógnita de Sócrates, tornou-se numa espécie de aluno bem comportado, leccionando, de forma ensaiada, o "como reconquistar o centro perdido". Depois, não se percebe como é que uma jornalista consagrada aceita fingir que está a entrevistar o Professor, quando apenas lhe serve de simpática caixa de ressonância. Desconfio, pelo andar desta carruagem, que Sócrates ainda vai pedir ao notável catedrático para este aceitar integrar o grupo de senadores da República que vai escrever o programa do grande centro consensual. "Boa noite! Até para a semana!".

O presente estado de graça pós-pantanal corre o risco de se transformar numa mistura da governação dos bloquistas centrais com os bloqueiros da ideologia e que se atinja aquele estado de serôdia análise, segundo a qual só seremos bons sociais-democratas aos cinquenta anos se tivermos sido entusiásticos estalinistas, ou trotskistas, aos vinte. Uma análise bem típica dos oitenta anos de Soares que ainda não disse que também à direita se tem de começar por ser nazi para atingirmos a moderação do desencanto no centro-direita. Por outras palavras, entrar na maturidade equivale ao desencanto do fim das ideologias e à esperança no livro de cheques, através da conquista de um lugar ao sol no esquema do carreirismo.

Assim, é condição essencial não sermos carne nem peixe andando sempre cautelosamente nos trilhos do nem tanto ao mar, nem tanto à terra, para, muito moderadamente, podermos ser arrastados pelo vento novo e seguirmos de feição as ondas da moda, nessa mecânica mistura que é dada pelos impulsos da extrema-direita e da extrema-esquerda.

De facto, quando se considera que a moderação é uma simples consequência mecânica de impulsos externnos, onde os solavancos, que são dados pela soma do mais um com o menos um, geram um lugar passivamente geométrico, apenas abdicamos das convicções próprias de quem devia ser minimamente autónomo. Só que, deste modo, podemos correr o risco da servidão, desse que gosta de ser mandado, colonizado ou escravizado. E pode ser que nos aconteça uma dessas tempestades imprevistas que nos venha a dizer que o desastre antes de o ser já o era.

26.2.05

Viva o centrão dos instalados!



As notícias da politiqueirice saíram do palco mediático. Uma qualquer entrevista de Portas, Jerónimo ou Santana já não tem muita razão de ser. E as disputas entre Mendes e Menezes, ou entre Telmo e Zezinha, apenas têm algum destaque tribalista. Importa mais saber quais vão ser os ministros e os seus ajudantes, antes de causar alguma breve excitação o debate parlamentar em torno do programa do governo. E mais destaque parece ter a conversa que Daniel Proença de Carvalho teve em casa dos Melos, ou a última reflexão de Vital Moreira no seu "blogue". Chegou a hora dos especialistas em transicionologia.

Um deles, ex-comunista e ex-socialista, conhecido advogado de negócios, com excelente curriculum, tanto em processos criminais como na gestão de interesses e investimentos, continua a apresentar o respectivo cartão de visitas de porta-voz do capitalismo à portuguesa, o que, para muitos, ainda continua a ser sinónimo de "liberal", especialmente se foi um dos "ministeriáveis" de Santana. Já o segundo, também ex-comunista, impressiona-nos com a moderação e os intensos e sinceros elogios à postura de Sócrates.

De qualquer maneira, bastou um simples resultado eleitoral para que a maior parte da nossa elite comunicativa viesse confessar que não vale a pena mudar o sistema, porque as regras do jogo permitiram a eficácia da mudança. Até se reconhece que as mensagens emitidas pelas candidaturas de Menezes e Mendes nada têm de ideológico, dado que apenas demonstram o pragmatismo de quem quer ganhar votos no chamado centro. Como se este fosse uma coisa estática e não dependesse das sacudidelas que, pela esquerda e pela direita, o tornarão excêntrico. Depois estranhem que Jardim lance nova cruzada contra os "neoliberais" e os "cavaquistas", de acordo com a palavra de ordem de Hugo Chávez, sem boina vermelha, mas com o mesmo venezuelismo.

As nossas volúveis classes mediáticas, especialistas na análise conformista, mas "ex-post-facto", as mesmas que ainda há pouco clamavam contra os malefícios do sistema político e as presentes regras do jogo, depressa mostraram a respectiva face ultraconservadora, até porque em equipa que ganha não se mexe. Afinal, de um momento para o outro, pela varinha mágica do eleitoralismo, o país deixou de estar deprimido, a desertificação do interior desapareceu, a pobreza foi eliminada, a corrupção, extinta, a pedofilia, extirpada e, com a justiça finalmente instaurada, todos passámos de bestas a bestiais.

Imediatamente, Ernâni Lopes, o consultor-mor do reino e do Bloco Central de interesses, veio propor a imediata diminuição em dois terços dos funcionários públicos, mas sem englobar na coisa as empresas de assessoria onde dominam as entidades públicas ou publicamente controladas. Como se fosse possível brincar com abstracções como "administração pública" ou "funcionário público", para que se confundam, em tais coisas, tribunais e hospitais, repartições de defesa do lince ibérico ou universidades, repartições de impostos ou serviços camarários da recolha de lixo.

Quem mistura médicos com mangas de alpaca, investigadores científicos com jardineiros do Palácio real, delegados do ministério público com motoristas do presidente da junta, operadores de radiotelegrafia com pilotos supersónicos, não conseguirá jamais conjugar uma realista reforma administrativa, até porque não é capaz de levar o direito positivo a reconhecer a necessidade de um "tertium genus" entre os que procuram o lucro e os que servem o público, coisa que talvez fosse conseguida pela cópia de certas "corporations" anglo-americanas e que não se confundem com as nossas associações públicas. Os mesmos que estragaram a ideia de "outsourcing", em benefícios dos curto-prazo das campanhas eleitorais e dos atavismos da corrupção e do clientelismo, fazendo engordar escritórios de advogados e algumas "multinacionais do direito".

A hipocrisia é tal que os mesmos que proibiram acumulações de actividades docentes não estabeleceram uma única regra quanto ao duplo emprego da parecerística e da consultadoria e que bem se pode provar pelo recurso à mera comparação de declarações de rendimento. Assim se compreende como o neocorporativismo triunfou, como o clientelismo campeia e como será impossível, com este modelo, lançar uma ética democrática. O centrão dos instalados vai continuar a mandar se todos forem a caminho do mesmo centro, apenas com diferenças nas "nouances" e nas equipas devoristas. Se o PS e o PSD/PP forem apenas duas faces da mesma moeda, poderão entusiasmar-nos as serôdias dissertações dos senadores da república, nessa entoação do Frei Tomás, mas manter-se-ão os mesmos tiques escleróticos de um sistema que nos continuará a apodrecer por dentro. Tenhamos esperança!

25.2.05

Os últimos dias do regime do governo dos espertos



Depois desta bebedeira de demagogia e populismo, a chamada direita lusitana parece-se cada vez mais com aqueles balões que vão perdendo a altiva pose, confirmando-se a história do rei que ia nu, antes de começar o debate sobre a outra história, a que falava no velho, no rapaz e do burro e sem que se possa recordar a necessária conclusão do ovo de Colombo. Por enquanto, com o PSD repartido entre Mendes e Menezes, falando-se até na eventual candidatura de um qualquer nortenho que se diga mais liberal, mesmo que seja branco, todos dizem que, no CDS, o grupo portista ortodoxo vai apoiar Telmo, antes de vermos que líder partirá para um exílio qualquer onde possa afogar os respectivos prazeres intelectuais.

Nenhum dos donos do poder está para aturar quem, gostando de cultivar a virtude da insolência, procura cumprir a lealdade básica que serve correntes de ideias ou sentidos institucionais e não se deixa manietar pelos temores revenrenciais e pelos fidelismos face a personalizações de poder, onde há sempre líderes sem fé. Desses em quem não podemos ter confiança porque eles não sabem comungar em instituições nem respeitam os sagrados contratos da palavra dada.

Às vezes, a inteligência não rima com a honra, neste país onde muitos ainda não perderam aquele defeito otomano do governo dos espertos, nomeadamente os que repetem os tiques escleróticos das administrações coloniais ou dos autoritarismos de marca salazarenta que, às vezes, se acumulam. Desses que procuram, através de sucessivas utilizações da lixívia, praticar "ad nauseam" o revisionismo historicista.



O cala-te-boca típico do regime do come-e-cala não serve para quem, tendo as mãos livres, nunca recebeu dessas luvas de pelica pressionante que recobrem peles bem sujas. E há estranhos silêncios por parte de quem, tendo o dever de não calar, prefere fingir que lava as ditas como Pilatos, só para aceder à mesa onde servem papas de sarrabulho dos que não querem enfrentar a verdade. Quem não tem telhados de vidro não pode continuar a sofrer bombardeamentos por parte dos que não gostam daqueles a quem não podem contabilizar buracos negros de passados ocultos.

Infelizmente, continuam os que, para sobreviverem, têm que comer o pão amargo da dependência e da servidão, neste país político que foi feito para não haver homens livres. Onde, apesar de haver democracia, permanecem as redes dos aparelhos criados pelo absolutismo para que não haja homens de antes queberar que torcer e que homens da Corte não podem ser.



A rede de dependências e medos vai continuar enquanto não assumirmos que em situações pós-totalitárias e pós-autoritárias, mesmo depois de se eliminarem os aparelhos visíveis da repressão e da corrupção, permanecem os subsistemas de medo e de venalidade que os mesmos geraram. Pior: abundam os micro-autoritarismos sub-estatais e esses modelos de temor reverencial podem aí ser substancialmente agravados e fomentados, principalmente quando as pequenas e os pequenos chefes do bando actuam em legítima defesa, em épocas de transição ou de crepúsculo.

É então que os anteriores agentes do totalitarismo e do autoritarismo activam o modelo, para se poderem conservar no comando de tais micropoderes. Assim, a activação dessa permanecente repressão, visível ou invisível, pode até levar a que os mesmos finjam que estão a ser vítimas de perseguições imaginárias, para que muitos caiam no engodo e alinhem num processo de instauração do espírito de seita, a que não faltam coisas como o revisionismo histórico, a literatura de justificação e o abundante recurso a milhentas hipóteses de teoria da conspiração, através de encenações cientificamente orientadas, nomeadamente pelo recurso ao boato, à difamação, à insinuação e à própria ameaça, através de um processo que seria ridículo se não fosse trágico e não gerasse amplos prejuízos pessoais a todos aqueles que não aceitam alinhar na procissão.



Tudo o que aqui escrevemos não é mera hipótese académica. Está a acontecer aqui e agora. Não contra o signatário, mas contra pessoas vivas, de carne, sangue e sonhos. Os nomes das instituições em causa serão adequadamente divulgados quando o processo de obtenção das provas concluir os seus meandros. E os perseguidos nem sequer são da minha área ideológica. Apenas fazem parte dos povos mudos deste país que não podem contribuir para o financiamento das campanhas eleitorais dos vencidos e dos vencedores.