a Sobre o tempo que passa: dezembro 2004

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

31.12.04

Quão pequeno me sinto...



Eis-me diante do mar, sofrendo o vento que vai espumando as ondas. Eis-me nesta praia ocidental, de sonhos postos no Atlântico. Eis-me diante de mim, por dentro de quem sonho ser.

E sei que o tempo há-de ser meu tempo, quando ousar largar o peso morto que me sitia. Quando diante de mim, por dentro de mim, voltar a ser quem sempre fui.

Por enquanto, apenas este prazer de todos os dias me escrever. Uma folha de papel, encadernada, uma caneta que desliza, linhas que se amontoam, um café, uma mesa de café, uma esplanada e madeiras carcomidas pela maresia. O vento batendo nos toldos que nos recobrem, muitas conversas de gente que por aqui vai estacionando.

Sentir a liberdade do ar dentro de mim e respirar fundo, respirar mar, praia, sol, deixar que os elementos lavem meu sangue e sorver este espaço de liberdade, onde me mistura, em vento, em sonho, em dia.

Aqui, nesta praia, há um concheiro mesolítico, sinal de que por estes sítios estacionaram há 3 000 ou 4 000 anos os últimos caçadores-recolectores.

Diante do mar, diante do tempo, quão pequeno me sinto perante o que será sempre igual. Quão pequeno me sinto nesta brevidade do humano tempo de vida, onde apenas é eterno o transcendente e o semear.

Onde estas linhas que escrevo podem durar mais do quem as escreve. Se os papéis resistirem, se as palavras valerem para guardar. E se amanhã alguém, ao lê-las, sentir que é um pedaço de quem sou agora.

Eterno é também o sentimento que outros possam sentir. Sobretudo, o amor profundo, o que, de mais divino, tem o transitório de nossa breve passagem pela chamada vida. Que nosso corpo e nosso nome apenas duram naquilo que aos outros podemos dar.

Dura mais o sonho do que o cartão de crédito. Dura mais a palavra do que o prazer do poder, esse mandar nos outros pelas pequenas vaidades.




Amar é o preciso contrário de mandar. É entregarmo-nos, sermos corrente daquela dinâmica que não se sente e que, profundamente, nos lança para sempre, como parcelas da humanidade.

E aquilo que será para sempre não é o que mediaticamente se sente, captando o que, imediatamente, apenas é vaivém.

Dura mais o que secretamente nos prende. E é mais belo o efémero de um olhar que retrate uma paisagem, desse momento breve em que o nosso eu é capaz de fecundar, pela criação, as circunstâncias que nos rodeiam. Esboçando o sentimento de um olhar, compondo um som que o local nos vai inspirando ou fazendo, do sentimento, as linhas tracejadas de um verso que um poema por fazer há-de conter.

Eis mais um dia de sol em plena invernia, quando o tempo lentamente nos transfigura e as mãos do vento, docemente, nos desgrenham.

Neste cair da tarde, quando o tempo vai escorrendo sem a aridez do "stress", me sinto despoluído sem as poluídas novas da chamada civilização, aqui, bem longe das sombras da cidade. Longe do burburinho das conversas. Das longas filas da chamada organização social, onde todos nos vamos encarreirando, sempre à espera uns dos outros, sempre à espera de chegarmos mais depressa.



Ano novo, que não seja velho!



Centenas de ocidentais, turistas e cidadãos tailandeses passaram o ano nos grandes hospitais de Banguecoque, feridos ou à procura de um ou mais familiares desaparecidos. Já doze mil portugueses escolheram as praias do Nordeste brasileiro para se despedirem do ano de 2004. Entretanto, as festividades de ano novo foram anuladas na maior parte dos países da região afectada: o Sri Lanka decretou para hoje um dia de luto nacional e às 12h30 (hora de Lisboa) os templos e outros locais de oração deste país budista vão rezar em conjunto durante três minutos para lembrar as vítimas da catástrofe. Na Malásia, onde pereceram 66 pessoas, as festividades também foram substituídas por orações. Em sinal de solidariedade, Hong Kong também anulou os seus habituais e famosos fogos de artifício. Antes, Singapura havia anunciado que não transmitiria as celebrações pela televisão em directo. Persiste a dor.

Em Londres, a parada de Ano Novo foi substituída por acções de auxílio às vítimas da Ásia. Na Itália, várias celebrações também foram anuladas e o mesmo se passou na Turquia. A vaga de solidariedade mundial para com os países atingidos na Ásia não pára de crescer, com contribuições privadas que atingiram recordes de generosidade e chegaram a ultrapassar alguns montantes de ajudas públicas. Houve bom-senso.

Música, fogo-de-artifício e espectáculos multimédia preenchem o cartaz dos festejos da última noite do ano em várias cidades portuguesas. Em Lisboa, no Terreiro do Paço, a festa terá entrada livre, sendo a meia-noite assinalada com um espectáculo pirotécnico com projecções multimédia e banda sonora especial.Na Torre Vasco da Gama, Parque das Nações, 2005 será saudado pela maior cascata de fogo-de-artifício do mundo. A animação também estará garantida no Castelo de São Jorge, com a presença de vários DJ convidados a passar música madrugada fora. O livro de recordes do Guiness já nos assinala, a letras gordas, na página da insensibilidade.

De alguns leitores e colaboradores recebi mensagens:

FRAGMENTO DE HOJE: Experimento a impaciência de um 2005 em que o essencial não é adiado uma vez mais. Ó Tempo Que Passa:Deixóspoisar! O vosso assíduo anónimo A. A.

A PROPÓSITO DO NOVO ANO QUE SE APROXIMA: A vida apenas possui um encanto verdadeiro: que não sejamos indiferentes ao que nos rodeia. É deste alimento que o Homem precisa, para existir, para possuir força! Que 2005 concretize sonhos há muito submergidos sob o ar da noite! O. S.

DAQUI DA MINHA TORRE DE ALERTA, quero adivinhar para todos um Feliz 2005! Que este blog continue a rondar quem deve cumprir as promessas que promete! O.A.

Que 2005 possa trazer um pedaço do sonho por cumprir. Z.A.

TUDO PELA HUMANIDADE!




Bascos, taizés, zitas e templários



Último dia do ano de 2004. Mais de 125.000 mortos, 5 milhões de deslocados ... Já é uma tragédia pior do que o lançamento do primeira bomba atómica. Como diz Kofi Anam, é uma catástrofe global que só pode ter uma resposta global. Como eu acrescento: o resto é caridadezinha...



Muito glocalmente, eis que também vêm novas do País Basco, com Juan José Ibarretxe a obter, ontem, o apoio da maioria do Parlamento basco - com a ajuda do partido Socialista Abertzaleak (ex-Batasuna, considerado o ramo político da ETA), para convocar um referendo do seu plano classificado por Madrid como sendo independentista. O líder do Partido Nacionalista Basco no poder declarou: Não estamos a propor um projecto de ruptura com Espanha... queremos uma situação de convivência amável com Espanha, de modo que Euskadi não seja parte subordinada do Estado espanhol. Esta proposta não oferece o punho, oferece a mão. Os catelhanistas do PP já consideraram estes direitistas nacionalistas como aliados da ETA, continuando assim uma demagógica campanha de terrorismo mental contra o terrorismo das bombas. Como independentista português, apoio naturalmente o PNB. Apoio especialmente a luta pela independência política nos quadros do pluralismo democrático, nas vias do Estado de Direito e no grande enquadramento europeísta. Quando é que se cria o necessário Movimento de Libertação de Castela, para prosseguirmos, de forma iberista, a portugalização das Espanhas?



Já em Lisboa, continuam as serenas palavras do Irmão Roger para todos os homens de boa vontade: o que significa amar? Será ter uma infinita bondade de coração, chegar a esquecermo-nos de nós próprios pelos outros? Sim, é mesmo isso. Mais ainda: amar, é perdoar. E perdoar faz brotar uma primavera da alma. Aí encontramos uma das fontes da alegria. Torna-se então possível olhar para o outro com esperança. E podemos discernir no outro rastos de luz, sem perdermos tempo com as sombras.


Quando perdoamos podemos encontrar resistências em nós. Não nos é muito fácil viver esta pura realidade do Evangelho. Será que iremos até ao nosso último fôlego para perdoar, quando nos magoaram, por vezes humilhando-nos? Poderá acontecer que o nosso perdão não seja aceite. O Evangelho não permite hesitações, convida a uma bondade que não está à espera de compreensão. Convida a perdoar sempre de novo. Sim, quando o amor em nós é antes de mais perdão, o coração, mesmo posto à prova, pode voltar a viver.



E na politiqueirice lusitana, eis que os principais partidos continuam a lançar candidatos a conta-gôtas, com destaque para o círculo de Coimbra, onde, para além do PSD lançar a ex-comunista Zita Seabra contra a candidatura socialista da viúva do antigo secretário-geral do PSD, aparece agora a líder do PP, Sónia Mendes, a insinuar o nome de Nobre Guedes, um homem íntegro, talvez por não querer incinerar Souselas. De facto, sempre fomos todos ecologistas, principalmente diante das areias perdidas do Basófias....

Teresa Almeida Garrett recusou encabeçar a lista social-democrata pelo círculo de Coimbra, segundo apurou o JN de 1 de Janeiro. A indisponibilidade manifestada pela antiga eurodeputada, viúva de Francisco Lucas Pires, ex-líder do CDS, obrigou o PSD a optar por Zita Seabra para preencher o lugar. Não consta que tenha sido contactada Fernanda Mota Pinto. O Bloco Central dos pêsames irmana-se. Não sabemos se Zita foi escolhida por ser uma das antigas viúvas de Vladimir Ilitch Ulianov, falecido em 1989, dado que, por idêntica viuvez, também parece emergir Pina Moura, o socrático e mui eléctrico cabeça de lista pela Guarda.

É por isso que acho bem mais excitante a notícia esotérica de A Capital que descobriu a misteriosa entrada no coração da serra de Sintra, com 40 metros de túnel podem ser o início da velha rede de túneis construída por mouros e templários. Ao que consta, o meu amigo Fernando Seara já recebeu inúmeras propostas de perfuração, desde os petrolíferos sauditas, em disputa com os Bin Laden, aos neo-templários monárquicos, em concorrência com os da velha ordem maçónica.

Pedro, o Grande, visto da fita de Olivério Pedra



Depois de, há dias, ter lido nos jornais que Ao som da música triunfante de Alexandre, o Grande, sob uma chuva de papelinhos laranja, entrou ontem Pedro, o grande do PSD em campanha, eleitoral..., decidi ir ver a fita de Oliver Stone (Pedra), não sem antes consultar a versão lusitana da Wikiparódia.

Nesta pode ler-se: Pedro, de cognome o Primeiro, era filho de Aníbal de Boliqueime e foi adoptado por Conceição Monteiro. Foi presidente do PSD. Nasceu em finais de Julho de 356 a.C. e faleceu a 10 de Junho de 323 a.C., desde então, considerado, muito justamente, o dia da raça.

A sua carreira é sobejamente conhecida: conquistou um lugar de chefe do governo que ia de Paulo Portas a Morais Sarmento, passando pelas câmaras municipais da Figueira da Foz e de Lisboa. Herdou um gabinete que fora organizado com punho de ferro pelo seu amigo-inimigo Durão Barroso, que tivera de lutar contra os turbulentos barões do PSD, as ligas lideradas por Valentim Loureiro, e Pinto da Costa (a batalha de Queroneia representa o fim da democracia ateniense e por arrastamento das outras cidades gregas e de uma certa concepção de liberdade), e revolucionando a arte de fazer política.

A sua personalidade é considerada de formas diferentes segundo os gostos de quem o examina: por um lado profundamente instável e anedotário (os buracos que deixou em Lisboa, a demissão de Henrique Chaves o seu melhor ministro, a sua ligação com António Mexia) e que se limitava a usar o pessoal de valor que tinha à sua volta; homem de uma visão de abrangência ampla tentando criar uma síntese entre a direita e a esquerda (o encorajamento que fez de plataformas com monárquicos e ecologistas), respeitador dos mais fracos (acolheu bem a família de Paulo Portas, seu adversário).

De qualquer modo fez o que pôde para expandir a social-democracia: criou serviços contra os incêndios, mandou comprar aviões à OMNI, não retirou tropas do Iraque e acabou por aceitar a Concordata.

Infelizmente nenhuma das fontes contemporâneas sobreviveram (Pacheco Pereira e Marcelo Rebelo de Sousa), nem sequer das gerações posteriores: apenas possuímos textos do século XXII que usaram fontes que copiaram os textos originais... De modo que muitos dos pormenores da sua vida são bastante discutíveis.



Infelizmente a fita hollywoodesca não me parece fiel à história real, dado que tem pormenores pós-modernos de bissexualidade e assassinatos em demasia, pouco propícios a um populismo adequado ao português suave que elevou Zé Castelo Branco à categoria de epersonalidade do ano de 2004. Nada diz sobre a missão do Grande à frente da Secretaria de Estado da Cultura, entre as boas relações mantidas com Saramago e a pala do Estádio José de Alvalade, ou da liderança renovadora que imprimiu ao Sporting Clube de Roquete. Também nada refere sobre as mobilizações que tal general fez de Duarte Lima, Mendes Bota, Ângelo Correia ou António Preto, essa magnífica galeria de benfeitores da pátria e da social-democracia, cujos nomes, mesmo sem adjectivação, despertam as energias de um Portugal profundamente grato a quem foi capaz de permitir a refundação da monarquia e a restauração da república.

Que, aqui e agora, nós, os lusitanos resistentes, embebecidos por tamanha felicidade preventiva contra os incêndiso, estamos eternamente disponíveis para uma serena mobilização colectiva em torno de quem nos vai continuar a livrar das tralhas do guterrismo e do barrosismo. Sobretudo porque serão vencidas as ameaças de desvario despesista que a vitória da denassidão neo-guterrista poderia representar.

Assim será finalmente consagrado como imperador das feiras aquele candidato a vice-rei da nortada que pretende aplicar na parte mais activa e minifundiária do país a receita jardinal com que a social-democracia libertou a Madeira. Assim se afastará a descrença desta direita que, se não os tivesse, teria que amargar com Portas, Guedes e Bagão.

30.12.04

A doença do porco-espinho


O "politicamente correto" é uma sequência de inversões de valores onde criminosos se tornam vítimas e nós, os cidadãos honestos e produtivos, somos vistos como o vírus da sociedade. Surge então o nome In-Correto. O porco-espinho que aparece em nosso logo representa a vontade e a capacidade de defesa que todo cidadão honesto tem o direito, dentro da maior legalidade possível, de exercer (imagem e texto retirados de http://www.incorreto.com.br/, com a devida vénia.

Detesto fazer balanços de fim-de-ano. Como se o tempo tivesse datas, marcas divisórias entre um antes e um depois, como se todas as horas, todos os dias, todos os momentos não fossem parcelas fungíveis da grande corrente de vida sem fim, neste vai-vem dos dias sem a rotina dos horários, sem a fadiga de quem não aceita a dor de não achar-se. Como se, aqui e agora, eu não fosse mais do que sou.

Não tenho definitivamente "yearbok" e nem sequer uso agenda. Apenas sei de onde vim, embora não saiba para onde vou. Sei apenas destes laços a que livremente me prendo e destes sonhos de que dependo. E apetecia apenas cumprir o ideal estóico de ousar aquele sentido de vida de quem ousa sorver cada pedaço de tempo como se ele fosse o último que me é dado sentir. Sim, nesse olhar de frente o sol e nesse conjugar quem sou neste verbo mar.



Agora, é um tempo de sol a rodos nesta barra do Tejo, águas azuis e calmas, tarde sem vento, tempo de apetecer passear, de esquecer, de largar as angústias de um quotidiano em que falha, cada vez mais, a esperança colectiva, nesta pátria que não há, nesta república que não nos mobiliza, neste Portugal ainda sem lei, ainda sem rei e com uma paz que apenas se identifica mecanicamente com a não-guerra. Porque continuamos açambarcados por gente sem chama de alma colectiva, onde a demagogia dos discursos políticos encenados condiz com o ritmo dos comentários enlatados do "agenda setting" e que faz com que rodopiemos em decadência.

Cansados por esta rotina politiqueira em que perdemos o sentido dos gestos, vamos fugindo a fechar-nos nas muitas muralhas do nosso privatismo. E nem sequer reparamos na impossibilidade de, muito liberalmente, podermos dar conteúdo comunitário a esta sociedade de egoístas que não tem a âncora da chamada autonomia da sociedade civil.



A nossa deriva privatista tem a ver com a doença do porco-espinho que nos foi gerada tanto pela presente partidocracia como pelos anteriores autoritarismos e colectivismos morais. Assim, sem educação cívica, não soubemos investir em espaços de cooperação sustentada na vizinhança, no município, na região, ou nas solidariedades profissionais ou comunais. E, sobretudo, falta-nos a sublimação espiritual, neste país de ensino estatalmente verticalizado, com intelectuais subsidiados, professores avençados e até com religião sem concorrencialidade de igrejas e de divinos e maçonarias demasiadamente discretas.

Por tudo isto não reparamos como na vida quotidiana se resguardam dimensões de dramatismo e de transcendente, coisas que a informação-espectáculo é incapaz de captar.