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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

30.12.04

A doença do porco-espinho


O "politicamente correto" é uma sequência de inversões de valores onde criminosos se tornam vítimas e nós, os cidadãos honestos e produtivos, somos vistos como o vírus da sociedade. Surge então o nome In-Correto. O porco-espinho que aparece em nosso logo representa a vontade e a capacidade de defesa que todo cidadão honesto tem o direito, dentro da maior legalidade possível, de exercer (imagem e texto retirados de http://www.incorreto.com.br/, com a devida vénia.

Detesto fazer balanços de fim-de-ano. Como se o tempo tivesse datas, marcas divisórias entre um antes e um depois, como se todas as horas, todos os dias, todos os momentos não fossem parcelas fungíveis da grande corrente de vida sem fim, neste vai-vem dos dias sem a rotina dos horários, sem a fadiga de quem não aceita a dor de não achar-se. Como se, aqui e agora, eu não fosse mais do que sou.

Não tenho definitivamente "yearbok" e nem sequer uso agenda. Apenas sei de onde vim, embora não saiba para onde vou. Sei apenas destes laços a que livremente me prendo e destes sonhos de que dependo. E apetecia apenas cumprir o ideal estóico de ousar aquele sentido de vida de quem ousa sorver cada pedaço de tempo como se ele fosse o último que me é dado sentir. Sim, nesse olhar de frente o sol e nesse conjugar quem sou neste verbo mar.



Agora, é um tempo de sol a rodos nesta barra do Tejo, águas azuis e calmas, tarde sem vento, tempo de apetecer passear, de esquecer, de largar as angústias de um quotidiano em que falha, cada vez mais, a esperança colectiva, nesta pátria que não há, nesta república que não nos mobiliza, neste Portugal ainda sem lei, ainda sem rei e com uma paz que apenas se identifica mecanicamente com a não-guerra. Porque continuamos açambarcados por gente sem chama de alma colectiva, onde a demagogia dos discursos políticos encenados condiz com o ritmo dos comentários enlatados do "agenda setting" e que faz com que rodopiemos em decadência.

Cansados por esta rotina politiqueira em que perdemos o sentido dos gestos, vamos fugindo a fechar-nos nas muitas muralhas do nosso privatismo. E nem sequer reparamos na impossibilidade de, muito liberalmente, podermos dar conteúdo comunitário a esta sociedade de egoístas que não tem a âncora da chamada autonomia da sociedade civil.



A nossa deriva privatista tem a ver com a doença do porco-espinho que nos foi gerada tanto pela presente partidocracia como pelos anteriores autoritarismos e colectivismos morais. Assim, sem educação cívica, não soubemos investir em espaços de cooperação sustentada na vizinhança, no município, na região, ou nas solidariedades profissionais ou comunais. E, sobretudo, falta-nos a sublimação espiritual, neste país de ensino estatalmente verticalizado, com intelectuais subsidiados, professores avençados e até com religião sem concorrencialidade de igrejas e de divinos e maçonarias demasiadamente discretas.

Por tudo isto não reparamos como na vida quotidiana se resguardam dimensões de dramatismo e de transcendente, coisas que a informação-espectáculo é incapaz de captar.